Fim de uma era? Hollywood insistiu em ignorar os sinais da revolução digital
O lançamento de uma “atriz” gerada por IA mostra que a indústria do entretenimento não aprendeu nada com as previsões de uma década atrás

De 14 de julho a 9 de novembro de 2023, o sindicato dos atores norte-americanos (SAG-AFTRA), que representa 160 mil profissionais, entrou em greve por causa de uma disputa trabalhista com a Aliança dos Produtores de Cinema e Televisão (AMPTP).
O impasse terminou com um acordo que, ao menos na teoria, impunha limites ao uso da imagem e da produção artística dos atores. Com o fim da greve, todos voltaram ao trabalho e a engrenagem industrial do entretenimento retomou seu ritmo habitual.
Mas, ao que parece, ninguém prestou atenção às lições oferecidas por um filme relativamente obscuro de 2013 – "O Congresso Futurista" – que antecipou com inquietante precisão a crise que Hollywood enfrenta agora.
Avançando para setembro de 2025: a atriz e comediante holandesa Eline Van der Velden, por meio de sua empresa Particle6, apresentou ao mundo uma “atriz” de inteligência artificial chamada Tilly Norwood, criada com a intenção declarada de se tornar a “próxima Scarlett Johansson”.

Tilly ganhou perfis próprios nas redes sociais, apareceu em esquetes de comédia e chegou a declarar, em tom empolgado: “posso ser uma IA, mas estou sentindo emoções muito reais neste momento. Estou tão animada com o que vem por aí!”
A notícia de que agentes de talentos estavam em negociação para representar Tilly, como fariam com uma atriz de carne e osso, provocou uma tempestade em Hollywood. Houve indignação generalizada, acusações de desumanização e, principalmente, muita ansiedade nos bastidores. Mas será que todos realmente deveriam estar tão surpresos?
A futurista Amy Webb acredita que não. “Vamos ser sinceros: eles tiveram mais de uma década para se preparar para isso”, afirmou.
Desde 1995, quando "Toy Story" se tornou o primeiro longa-metragem totalmente animado, o cinema já mostrava que podia ir bem sem atores reais. Em 1996, a heroína digital Lara Croft estreou nos videogames, antes de virar personagem de cinema em 2001. No ano seguinte, um “ator simulado” estrelou o filme de ficção científica "Simone".
Em 2011, o grupo japonês AKB48 apresentou uma nova integrante, Aimi Eguchi, que conquistou fãs rapidamente – até que se descobriu que ela era uma composição digital feita a partir dos rostos das outras integrantes.
Cinco anos depois, surgiram influenciadores virtuais como Lil Miquela, que acumulam milhões de seguidores e contratos publicitários. E, em 2020, Miquela assinou com a agência CAA, tornando-se sua primeira cliente totalmente virtual.



OS PONTOS CEGOS DE HOLLYWOOD
Agora que parecem pegos de surpresa, o que exatamente os estrategistas de Hollywood deixaram passar?
Provavelmente, focaram demais no próprio umbigo. Disputas sindicais, negociações de contratos e mudanças no consumo de entretenimento tomaram tanto tempo e energia que os executivos deixaram de observar o panorama mais amplo.
O maior risco para o setor não vinha de estúdios concorrentes, mas de algo capaz de tornar suas práticas obsoletas, indesejáveis ou caras demais.
Uma vez que uma inovação se mostra eficiente e lucrativa, é praticamente impossível voltar atrás. Basta lembrar o que aconteceu com a publicidade segmentada na internet ou os aplicativos de transporte.
Além disso, muitos cineastas sempre sonharam em usar atores gerados por IA, chegando a testar tecnologias capazes de “reviver” artistas falecidos.
Mas talvez o motivo mais profundo da cegueira coletiva tenha sido a recusa em encarar a própria vulnerabilidade. Aceitar o conceito de atuação digital e de mundos totalmente virtuais significa aceitar também que talento, técnica e anos de experiência podem perder valor.
Só que a lei da disrupção, segundo a qual o complexo se torna simples e o caro se torna barato, não leva em conta as preferências de ninguém.
AMEAÇA EXISTENCIAL
O que Hollywood poderia ter feito? Poderia ter criado experimentos controlados com atores digitais para entender a reação do público, testar fluxos de produção e explorar novas possibilidades criativas. Poderia ter investido em equipes dedicadas a desenvolver narrativas inovadoras, livres das limitações físicas da atuação humana.
Também poderia ter colaborado com legisladores e sindicatos para criar regras equilibradas para o uso de IA, especialmente no que diz respeito à propriedade intelectual. Ou ainda, poderia ter investido nas tecnologias digitais por conta própria, em vez de deixar que empresas de tecnologia, como a Netflix, tomassem a dianteira.

Tilly Norwood não é a disrupção em si, é apenas o tiro de advertência. A verdadeira transformação virá quando a inteligência artificial for capaz de gerar não apenas atores, mas filmes inteiros, sob demanda, personalizados para cada espectador e com custo praticamente zero.
Os estúdios que sobreviverem não serão os que têm os maiores catálogos nem os que colecionam mais prêmios. Serão os que entenderem que os pilares do setor – a escassez de conteúdo, o talento humano e as histórias fixas – estão sendo desmontados um a um. E que souberem reinventar seus modelos de negócio para o futuro.
Os sinais estão aí. A questão é: quem está disposto a escutá-los?