IA pode ser coadjuvante de ouro no cinema nacional

No embalo de “Ainda Estou Aqui”, especialistas acreditam que tecnologia traz oportunidade de elevar a indústria audiovisual brasileira no mundo

Crédito: Jacques Durocher/ Getty Images

Camila de Lira 7 minutos de leitura

A inteligência artificial virou ferramenta para o cinema de Hollywood.  Dois dos filmes mais indicados ao Oscar de 2025, “Emilia Perez” e “O Brutalista”, usaram a tecnologia em seus processos criativos e técnicos.

Enquanto críticos e parte do público enxergam a IA como uma ameaça à autenticidade artística, especialistas apontam que ela pode democratizar a criação, reduzir custos e abrir novas possibilidades narrativas.

A resistência contra a inteligência artificial generativa tem um motivo: muitos temem que a IA “roube” referências e crie algo não original. Há preocupações de que a força da tecnologia em criar áudio e imagens rapidamente seja usada para tirar empregos da indústria cinematográfica. O tema foi o centro das discussões dos sindicatos de roteiristas e atores de Hollywood em 2023.

O debate girou em torno dos direitos autorais e de reprodução. Como roteiristas, por exemplo, poderiam ser remunerados se suas ideias fossem replicadas em sistemas de IA? Os medos trouxeram mais confusão do que clareza para o público.

"Quando falamos de inteligência artificial no cinema, é importante separar o artístico do funcional. São duas dimensões diferentes.", explica Ricardo Laganaro, Chief Creative Officer (CCO) da ÁRVORE Experiência Imersivas, o maior estúdio de conteúdo imersivo do Brasil. 

Laganaro também é diretor premiado internacionalmente. Seu último curta, “A Linha”,  foi vencedor do prêmio de Melhor Experiência em VR no 76º Festival de Veneza e do Prêmio Primetime Emmy por Inovação Excepcional em Mídia Interativa.

Para Ricardo, a inteligência artificial no cinema, usada para apoiar pontos da pré- produção e da pós-produção, bem como para alterar a narrativa de maneira eficiente, é bem-vinda. Mas, se ela tem o intuito de distorcer a realidade a ponto de usar deepfakes de artistas ou direitos autorais não liberados, deve ser evitada.

“Olhar para o uso é um limitador importante quando falamos de IA. A tecnologia nos dá possibilidades incríveis na natureza do cinema, mas não quer dizer que está tudo liberado”, comenta o produtor. E aí entram as discussões atuais dos dois filmes que disputam com o brasileiro “Ainda estou aqui”, na categoria de melhor filme.

PULAR ETAPAS DA PRODUÇÃO

Em “O Brutalista”, de Brady Colbert, a ferramenta de IA utilizada foi a Respeecher, que faz mixagem de áudio. O objetivo foi deixar o húngaro falado no filme mais realista.

Falante nativo da língua, o editor da película, Dávid Jancsó, afirmou que entendia a complexidade de replicar o húngaro. Isso é verdade até mesmo para Brody, cuja mãe é uma refugiada da Hungria. Embora os produtores tenham treinado Brody e Jones intensivamente, o editor Dávid Jancsó usou a ferramenta para misturar as pronúncias corretas de algumas palavras nos diálogos.

“Você pode fazer isso no [Avid] Pro Tools, mas tínhamos tanto diálogo em húngaro que realmente precisávamos acelerar o processo; caso contrário, ainda estaríamos na pós-produção”, disse o editor, em entrevista replicada pela Fast Company.

A redução do tempo é um ponto positivo do uso da IA, explica Paulo Barcellos, Chief Executive Officer (CEO) da O2 filmes, produtora responsável por hits audiovisuais como “Cidade de Deus" e "Cangaço Novo". Com experiência na área de tecnologia, Barcellos lidera a integração de IA generativa em projetos de grande escala no cinema brasileiro.

Na O2, o Chat GPT ajuda a eliminar etapas entre concepção de ideia e pesquisa de roteiro.

Ele explica que a ferramenta, assim como a usada pelo “Brutalista”,  apoiam a redução de trabalhos operacionais repetitivos comuns na produção audiovisual. Atividades como calcular a quantidade de locações que existem em um roteiro, pesquisar os contextos narrativos do roteiro, criar diferentes storyboards para a mesma cena ou pesquisar uma fala fora do tom em 30 horas de material bruto.

Fazer tudo isso com rapidez agiliza a cadeia toda responsável pelo filme. Se a pesquisa que levaria anos para fazer pode ser feita em poucas semanas, significa que a direção vai filmar em menos tempo e que a pós-produção receberá a gravação com antecedência. A O2 também está testando ferramentas de dublagem. Usar o áudio do próprio ator como parte da fala dublada pode deixar a película mais natural.

O potencial da IA de dublagem é de “levar os filmes brasileiros para outros mercados, como o norte-americano”. A ferramenta deve chegar para a audiência dos produtos da 02 ainda este ano. "A IA pode ser a última grande oportunidade para o país fechar sua defasagem tecnológica e se destacar na indústria audiovisual mundial.”

Para Barcellos, o momento é extremamente oportuno para a indústria cinematográfica brasileira. A indicação histórica de “Ainda estou aqui” para o Oscar de melhor filme mostra que há mais espaço para produções brasileiras no mercado internacional. Ele acredita que o momento é de abraçar a tecnologia, adaptá-la à realidade local e usá-la para criar histórias que encantem tanto aqui quanto globalmente.

"Vai chegar um momento, e não vai demorar, quer dizer que usou IA no filme vai ser como dizer que usou o corretor do Word no texto. Não será um privilégio, mas a norma”, diz Barcellos.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO CINEMA PARA AMPLIAR A CRIATIVIDADE

Quando bem utilizadas, as ferramentas cortam o custo final da produção, em uma indústria que trata orçamentos de US$ 10 milhões como “baixo”. Poder produzir com custos menores amplia a capacidade criativa. "A IA pode democratizar a criação ao oferecer ferramentas acessíveis a pequenos negócios e artistas independentes", diz Janaina Augustin.

Com mais de 20 anos de experiência no audiovisual, Janaina é consultora estratégica da Gullane Filmes, produtora de hits como “Que horas ela volta? " e a série “Senna”.

Janaína também realiza apresentações e mesas de discussão sobre o uso de IA generativa no audiovisual, trazendo insights para cineastas que buscam integrar tecnologia e criatividade. Na semana que vem, fará um workshop sobre o tema na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, um dos principais festivais de cinema independente do país.

Janaina cita ferramentas como o LTX, que cria storyboards visuais a partir de descrições de cena. Plataformas como Sora e Runaway, de IA generativa, já tem capacidade de criar vídeos curtos. A Runaway, por exemplo, tem até festivais de curta. Ela tem uma série de prêmios próprios para criadores que utilizam IA de ponta a ponta, curtas que podem ser assistidos no Runway Watch.

Curta metragem "A Linha", de Ricardo Laganaro (Crédito: ARVORE)

Tais ferramentas permitem que roteiristas migrem para a direção, por exemplo, e que os diretores testem seus saberes em animação, explica Marcelo Müller. Ele é pesquisador e realizador do audiovisual e, este ano, vai estrear uma cadeira de prestígio: o curso de inteligência artificial para artistas na Universidade de São Paulo (USP).

“Mais do que atacar ou temer, eu sugiro que as pessoas da área experimentem a IA. É uma tecnologia empoderadora para pessoas criativas”, diz Müller.

Segundo o professor, o cinema não vai morrer, ele vai ganhar novas ramificações criativas. E ganhar novas opções e formatos. A inteligência artificial no cinema terá ainda mais poder se ela for usada para filmar “o impossível”. Para tanto, ainda é necessária uma boa dose do olhar humano.

Quando falamos de inteligência artificial no cinema, é importante separar o artístico do funcional. São duas dimensões diferentes.

 “A IA é criada por humanos, não é um ser mítico. Para gerar algo relevante, precisa de direção e de um artista bem preparado”, afirma Janaina. O olhar das pessoas ainda é fundamental. É ele quem, de fato, cria.

Na opinião de Müller, a IA eleva o nível de exigência para diretores, roteiristas e produtores. “A tecnologia exige que o artista tenha formação cultural maior, que tenha repertório, que saiba o que o torna único”.

O que leva a discussão para “Ainda Estou Aqui". O filme de Walter Salles emociona pela sutileza. A atuação de Fernanda Torres, indicada ao Oscar de melhor atriz, é elogiada pela profundidade emocional de sua personagem, sem cair na dramatização caricata. Com orçamento de US$ 1, 3 milhão, o longa é a produção mais barata entre os indicados. "Duna", que concorre na categoria, custou cerca de US$ 190 milhões.

Crédito: Reprodução/ HBO Max

O filme foi baseado nas memórias de Marcelo Rubens Paiva, contadas no livro de mesmo título. Também foi estruturado nas fotos e filmes que a família de Rubens Paiva guardou por anos.

O toque final da obra é de Walter Salles. O diretor visitava a casa de Rubens Paiva nos anos 70, quando jovem. Sem o cérebro, o olhar e o coração humanos, não existiria filme. Isso é realidade em uma indústria com ou sem IA.

Desde os primórdios, o cinema é baseado em tecnologia. Em 100 anos, a arte se adaptou a tecnologias de transmissão de áudio, de produção de vídeo e distribuição de conteúdo. O cinema entrou na era digital e mudou novamente. Nada disso impediu fossem criados filmes que nos tocam, nos movem. A arte ainda está aqui.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais