Letramento em IA: o novo desafio da educação brasileira

Enquanto países como Japão, China e Estônia já formam estudantes para pensar com IA, o Brasil tenta reagir a um fenômeno que já ocupa as salas de aula, mas ainda está em discussão no MEC

mãos seguram um lápis e um celular
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Camila de Lira 7 minutos de leitura

A inteligência artificial entrou nas escolas brasileiras sem pedir licença e segue sem direção no currículo pedagógico nacional. 

Sete em cada dez estudantes do ensino médio já recorrem a ferramentas generativas para fazer trabalhos e pesquisas, segundo o Comitê Gestor da Internet (CGI-Br).

Mais da metade dos professores também usa as ferramentas para preparar aulas ou corrigir provas, de acordo com a Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (na sigla em inglês, Talis), pesquisa coordenada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Enquanto isso, o Ministério da Educação (MEC) ainda está em conversas iniciais para criar um referencial nacional sobre uso ético da IA na educação. 

A ausência de políticas públicas e de formação docente faz com que o uso da tecnologia cresça sem critérios éticos ou propósito pedagógico. 

Esse é o cenário ideal para o uso “pasteurizado” da tecnologia, avalia o educador, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e head do Proz Educação (empresa focada em ensino técnico e profissionalizante), Luciano Meira.

“Todo mundo faz redação com IA, o professor corrige com IA também. As IAs ficam conversando, ninguém desenvolve pensamento crítico, nem capacidade de aprendizagem”, afirma.

Remodelar a escola é revisar o próprio propósito do ensino.

Nos últimos 12 meses, Japão, China e Estônia aprovaram políticas nacionais que tratam o uso da inteligência artificial como parte do processo de aprendizagem, e não apenas como ferramenta auxiliar. 

Na China, o plano lançado em agosto de 2025 tornou a disciplina de IA obrigatória no currículo básico, conectando o ensino da tecnologia à resolução de problemas e à consciência social.

Na Estônia, país que lidera o ranking do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) na Europa – com 510 pontos em matemática, 511 em leitura e 526 em ciências –, o programa AI Leap 2025 vai treinar três mil professores e oferecer experiências práticas com IA generativa a 20 mil alunos.

Não se trata de usar o ChatGPT ou a Anthropic, ou o mais novo aplicativo de correção de redações, mas sim de promover um conhecimento que será cada vez mais necessário nos próximos anos: o letramento em IA.

A-B-C-IA: LETRAMENTO EM INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

O termo letramento em inteligência artificial ainda é novo no Brasil, mas já aparece como prioridade em relatórios internacionais.

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) define o conceito como o desenvolvimento de competências humanas, éticas, técnicas e criativas – uma combinação que permite compreender como a IA pensa, quais limites carrega e de que forma suas decisões moldam o mundo.

Não se trata de ensinar a usar ferramentas, mas de preparar cidadãos capazes de pensar criticamente sobre elas. Segundo a pesquisa TIC Educação 2024, do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), apenas 19% dos alunos brasileiros afirmam ter conversado com professores sobre o uso de aplicações de IA em atividades escolares e só 33% receberam orientações sobre como identificar erros ou vieses em conteúdos gerados pelas ferramentas.

estudante usa inteligência artificial
Crédito: Freepik

Para o pesquisador, educador e escritor Rafael Irio, o letramento em IA é justamente esse processo anterior ao uso da tecnologia. “É como dar uma Ferrari a um jovem de 17 anos sem carteira de motorista. O letramento é dar a carteira de motorista para o jovem usar essa ferramenta poderosa. É a oportunidade de entender impactos e limites antes de `dirigir`.”

Ele reforça que alfabetizar em IA é ensinar o porquê e como usar, não apenas qual usar. “O letramento não é incentivo, é proteção”, afirma. “Significa reconhecer quando a IA substitui o pensamento e quando amplia.”

Essa visão ecoa na Carta de Recomendação para o Uso de IA na Educação, publicada este ano pelo Educa+IA, da Universidade de São Paulo. Criado em 2023, o grupo propõe diretrizes para o uso ético da tecnologia nas escolas, com foco em formação crítica, transparência de dados e supervisão humana.

I-ALFABETIZAÇÃO PARA PROFESSORES

Se o letramento em IA é uma nova forma de alfabetização, ele precisa começar pelos professores – os mais de 2,3 milhões de educadores brasileiros que estão na linha de frente da aprendizagem. São eles que ajudam a traduzir o mundo para os alunos e agora precisam aprender a dialogar com tecnologias que também ensinam.

“Não é que os professores resistam à tecnologia – eles não sabem o que fazer. Quando a formação é adequada, eles se encantam, porque veem sentido e resultados”, afirma Luciano Meira.

Não se trata de ensinar a usar ferramentas de IA, mas de preparar cidadãos capazes de pensar criticamente sobre elas.

A i-alfabetização dos docentes faz parte do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, lançado em 2021, que até agora não saiu do papel. Há esforços pontuais, como o iAgora, da Universidade de Brasília (UnB), que oferece cursos introdutórios sobre IA para professores.

Mas o cenário nacional ainda é dominado por microcursos das próprias big techs, como Google, Microsoft e OpenAI. São formações que ensinam a usar os aplicativos das próprias empresas, sem discutir os impactos cognitivos, sociais ou éticos.

“Precisamos de um MEC muito atuante, muito forte. Precisa muito mais do que palestras”, diz Meira. Para ele, a IA promete remodelar a escola como a conhecemos. Isso exige repensar o papel do professor como mediador de pensamento, não apenas como executor de tarefas.

UMA NOVA ESCOLA, PARA NOVAS COMPETÊNCIAS

Muito da inteligência artificial ainda é território desconhecido. Os países que já incluíram o ensino da tecnologia no currículo mostram que a discussão não é (e nunca foi) sobre máquinas, mas sobre aprofundar as competências humanas. O desafio não está em dominar códigos, e sim em reaprender a pensar, argumentar e criar em diálogo com sistemas inteligentes.

No Japão, as diretrizes publicadas em dezembro de 2024 orientam escolas a aplicar IA de forma centrada no humano, incentivando o pensamento crítico e a ética digital. Elas já são a segunda versão do documento. Em 2023, o governo japonês havia publicado diretiva proibindo alunos de usarem sistemas de IA generativa.

Crédito: Freepik

Agora, os professores são orientados a discutir como a IA gera textos, imagens e vídeos, a identificar erros, vieses e informações falsas, e a avaliar quando o uso é apropriado ou não.

As ferramentas generativas, como o ChatGPT, podem ser utilizadas em atividades supervisionadas: por exemplo, comparar uma redação produzida por IA com outra escrita por um colega, para analisar argumentação e estilo. A proposta japonesa é formar alunos que saibam ler criticamente o que a tecnologia produz.

No currículo chinês, aprovado em agosto deste ano, a ideia é que as crianças produzam novos sistemas de IA. Assim como no Japão, o ensino é faseado, exigindo diferentes competências em cada idade.

É preciso repensar o papel do professor como mediador de pensamento, não apenas como executor de tarefas.

As crianças mais novas aprendem lógica e reconhecimento de padrões; os alunos do ensino fundamental exploram raciocínio algorítmico; e os adolescentes avançam para temas como machine learning, privacidade e impacto social da automação.

O objetivo não é colocar crianças para conversar com chatbots – o que apresenta riscos para os pequenos –, mas formar uma compreensão progressiva sobre como a tecnologia pensa e como afeta a sociedade. 

Na Estônia, o contato com a IA começa mais tarde. Segundo o pesquisador e advogado Ronaldo Lemos, as ferramentas de IA só são introduzidas a partir dos 14 anos. Antes disso, o foco está no desenvolvimento humano e emocional. A IA entra em cena quando os estudantes já têm repertório para discutir ética, autoria e intencionalidade.

ENSINAR A PENSAR

Essas iniciativas mostram que a IA não substitui a escola, ela redesenha o que significa aprender. Como defende Luciano Meira, incorporar a IA ao ensino exige ensinar pensamento crítico, colaboração e argumentação, competências raras na formação pedagógica brasileira.

“A gente precisa ensinar pensamento crítico, mas ninguém ensina a argumentar. Não existe uma disciplina sobre processos argumentativos em nenhum curso de pedagogia que eu conheço”, afirma.

Remodelar a escola, nesse contexto, não é trocar livros por tablets ou substituir tarefas por prompts. É revisar o próprio propósito do ensino, transformando a aula em um espaço de investigação, diálogo e criação compartilhada.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais