Memória fora da coleira

A memória ainda é uma ilha de edição, mas talvez não sejamos mais nós os editores. Com a IA, o passado nunca mais será o mesmo

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Guido Sarti 4 minutos de leitura


Quando tenta lembrar da memória do passado mais distante de sua vida, a australiana Rebecca Sharrock se vê sentada no banco dianteiro de um carro, envolta em um cobertor cor-de-rosa, enquanto seus pais conversam sobre levá-la para casa.

Ela tem memória autobiográfica altamente superior (H-SAM), uma condição raríssima que a faz se lembrar de praticamente tudo o que viveu.

Menos de 100 pessoas no mundo possuem a condição de Rebecca. Normalmente, nossas primeiras memórias datam de quando tínhamos por volta de quatro anos de idade. Não por acaso: para lembrar das coisas, é preciso primeiro dar nome a elas.

Assim que nos apropriamos da linguagem simbólica, tudo muda – inclusive a capacidade de reter lembranças. Saímos do mundo das sensações para o mundo dos símbolos e, com eles, criamos memória. Com a memória, um passado.

E nunca o passado foi tão abundante. Tanto na escala individual como na coletiva, nunca registramos tanto sobre nossas lembranças. Entre redes sociais, fotos, vídeos e ferramentas de IA generativa, todos somos um pouco Rebecca.

Você pode não lembrar do próprio parto, mas não é improvável que tenha uma foto sua minutos após nascer. Se nossa geração não tem, nossos filhos possivelmente terão.

Desde que o homem começou a escrever, nunca mais parou. Dos traços na cera dos gregos e romanos às páginas dos livros, do mármore ao pergaminho, sempre houve uma luta incessante para salvar os fatos da morte pelo esquecimento.

Mas se Sócrates, em seu diálogo com Teeteto, comparava a memória humana a uma tabuinha de cera – onde inscrevemos e apagamos percepções à medida que queremos lembrar ou esquecer –, hoje essa metáfora ganha outra camada.

Crédito: Pixabay

Vivemos em uma era na qual a escrita e a memória do passado migraram para os servidores invisíveis da nuvem, para os repositórios das inteligências artificiais e das plataformas digitais.

Se antes os livros eram objetos transcendentes, como canta Caetano Veloso, hoje o conhecimento se espalha e se reconfigura por algoritmos que armazenam, organizam e, se necessário, apagam.

Esse novo paradigma nos oferece possibilidades extraordinárias, mas também nos impõe um dilema: se nossa história pode ser corrigida, reeditada ou até removida, o que de fato permanece?

"EU VEJO O FUTURO IMPLODIR O PASSADO"

Há quem diga que estamos perdendo o controle sobre nossa própria história.

Andrew Hoskins, professor da Universidade de Edimburgo, defende essa tese. Em seu artigo "AI and Memory" (IA e Memória), publicado pela Universidade de Cambridge, ele afirma: “a inteligência artificial desvincula o passado humano do presente, produzindo um passado que originalmente nunca foi lembrado de fato. A IA generativa muda o que é a memória e o que ela faz, levando-a além da influência e do controle humano individual”.

A partir do momento que a IA entra no jogo – e rapidamente se torna o melhor jogador em campo –, o ser humano perde parte do controle sobre seu próprio passado. Ferramentas como ChatGPT e DeepSeek remixam nossa memória coletiva e individual ao ponto de o que chamamos de história oficial ser algo que jamais foi registrado dessa maneira. Uma espécie de passado inédito.

se nossa história pode ser corrigida, reeditada ou até removida, o que de fato permanece?

Estamos perdendo a influência sobre a nossa própria narrativa? Se a IA pode manipular o que é lembrado, o que nos garante que a história que conhecemos será sempre a mesma?

O perigo não está apenas na memória individual, mas na memória do passado coletiva – a famosa História com H maiúsculo. Corremos o risco do eterno revisionismo. Em um mundo onde a verdade já foi sólida, se tornou líquida e agora é gasosa, precisamos nos perguntar: o que permanece no chão da realidade mesmo durante o vendaval da pós-verdade e da desinformação?

Relativizar a escravidão ou dizer que o nazismo era de esquerda não são questões de interpretação. São mentiras. Ainda há sólidos monólitos compostos da Boa & Velha verdade.

DE VOLTA PARA O PASSADO

Rebecca consegue acessar uma memória vívida de quando teve um pirulito arrancado de suas mãos na escola. O que pode parecer trivial para um adulto, não foi arquivado de maneira trivial lá atrás.

Para uma criança recém-introduzida ao paradisíaco mundo dos doces, ter arrancado de suas mãos um simulacro de peito materno feito de puro açúcar pode ser a coisa mais traumática do mundo. Para Rebecca, essa lembrança não perdeu intensidade. Ela revive o momento com a mesma dor de quando aconteceu.

“Preciso ter distrações como barulho e luz ao meu redor para conseguir dormir. Se tudo estiver quieto, as memórias simplesmente surgem na minha mente e isso me mantém acordada”, contou Rebecca ao "The Guardian".

Jorge Luis Borges dizia que o passado é uma matéria maleável. Ele pode ser reinterpretado, ressignificado e, em muitos casos, reescrito. Sempre imaginamos que a tecnologia mudaria nosso futuro. Mas agora, ela também altera o passado.

Ainda não conseguimos viajar no tempo para modificar os fatos. Mas podemos assistir à IA reconfigurar ou mesmo apagar pedaços da nossa história.

Parece que, por enquanto, essa é a viagem no tempo possível.


SOBRE O AUTOR

Guido Sarti é sócio da Galeria Ag e atua como professor coordenador na Miami AdSchool. Foi Head de Novos Negócios e Convergência na Gl... saiba mais