Não é só o slop. Uso de IA está deixando tudo mais parecido
Pesquisa Mais do Mesmo mostra que brasileiros estão achando conteúdo digital cada vez mais semelhante. É um sintoma da cultura hiperotimizada

Não é só a retrospectiva do Spotify ou do YouTube. Ou os textos inspiracionais no Linkedin. Não são só as mensagens engraçadinhas compartilhadas em grupos de WhatsApp. Não é só esta semana. Com o aumento do conteúdo gerado por inteligência artificial, estamos cada vez mais com a sensação de ver "mais do mesmo" no ambiente digital.
Pesquisa realizada pela consultoria Página 3, intitulada Mais do Mesmo, mostra que 48% dos brasileiros usuários de internet acham que a IA está tornando tudo "cada vez mais parecido".
Não se trata apenas dos slops (conteúdos de baixa qualidade). O estudo traz a resposta para a seguinte pergunta: “você recebeu ou ouviu mensagens que pareciam ter sido geradas por IA no último ano?” Para 49% dos brasileiros, “sim, muitas vezes”.
“Estamos delegando muito nosso pensamento para as inteligências artificiais e para os algoritmos. A partir do momento em que fazemos isso, começamos a beber muito do mesmo lugar”, afirma a pesquisadora e sócia da Página 3 Sabrina Abud.
No ano passado, 54% do conteúdo postado no LinkedIn em inglês foi produzido por IA generativa, segundo dados da plataforma Originality.ai. De acordo com o Pinterest, 57% de todas as imagens publicadas na web já são fruto de ferramentas de inteligência artificial generativa.
O sistema funciona produzindo variações do mesmo sob a aparência de novidade.
Uma das líderes da pesquisa, Sabrina se preocupa com o efeito de respostas padronizadas e uniformi- zadas sobre a qualidade das perguntas das pessoas. Para ela, o consumo de conteúdo com os chatbots só parece ativo, mas guarda certa passividade.
“A gente pede para o sistema fazer um e-mail de trabalho. Quando vê, já estamos pedindo para o ChatGPT responder a mãe que falou que está com saudades”, alerta.
De acordo com a pesquisa, 63% dos brasileiros que usam IA costumam pedir ou consultar o sistema antes de conversar ou escrever para outras pessoas.
HIPEROTIMIZAÇÃO DA CULTURA
Um dos discursos dominantes sobre o uso da inteligência artificial no dia a dia, especialmente no trabalho, é o da eficiência e da automação de tarefas. Ao delegar rotinas repetitivas a sistemas inteligentes, o ser humano ganharia tempo para “ser mais humano”.
O que estamos vendo não é bem isso. As ferramentas de IA passaram a produzir textos e imagens em ritmo acelerado e, como consequência, mais conteúdo é publicado o tempo todo.
O resultado não é menos trabalho nem mais tempo livre, mas uma aceleração constante da produção. Não se trata de culpa individual dos usuários, e sim de um sintoma dos tempos. O think-thank independente norte-americano Office of Applied Strategy tem um nome para esse fenômeno cultural: hiperotimização.

Segundo o grupo, vivemos em uma cultura organizada para maximizar eficiência, velocidade, escala e engajamento. Uma cultura pensada para acelerar a velocidade do consumo, mesmo que isso implique eliminar fricções essenciais ao processo criativo, como o erro, a dúvida, a hesitação e os filtros.
"Editores são varejistas; varejistas são influencers; influencers são designers", explica um relatório da organização. Isso gera um "gigante goop quântico" (uma massa quântica gigante) sem distinção.
Na sua newsletter semanal, os psicanalistas brasileiros da Float falaram sobre essa “goonificação”, que explicaram como a substituição da cultura por atividades "compulsivas" – como vídeos virais de segundos e músicas que entram no top 10 mais escutadas por conta de trechos que viralizaram no TikTok.
REPERTÓRIO ARTIFICIAL
O sistema funciona dobrando aquilo que “dá certo”, produzindo variações do mesmo sob a aparência de novidade. O resultado é um ciclo vicioso de conteúdo insípido, regurgitado e repetitivo.
A sensação para quem usa é a que temos ao ver uma página do Pinterest cheia de referências visuais criadas por IA. São designs tão parecidos que é difícil achar um tom de originalidade. Ou a que temos ao entrar no Linkedin e ler quatro postagens com a mesma estrutura de texto, os tópicos no mesmo parágrafo, as frases opositivas e “provocadoras” em tom parecido.
48% dos brasileiros usuários de internet acham que a IA está tornando tudo "cada vez mais parecido".
“Vamos tendo um 'achatamento' das criações. Funciona, é aceito, mas nada é incrível”, afirma Georgia Reinés, sócia da Página 3 e uma das líderes da pesquisa Mais do Mesmo.
Às vezes, o e-mail que parece rotineiro e “automatizável” no trabalho é exatamente o que faz a pessoa aprender a encontrar o seu tom profissional. Escrever organiza o pensamento e ajuda na descoberta da autenticidade, explica Georgia. “Como as pessoas vão saber quem elas são, o que elas gostam, quais são seus ritmos, se não passam pelo processo?”.
Além disso, tanto a fala quanto a escrita são duas das principais formas que o ser humano tem de transformar informação em conhecimento e em repertório.
TUDO É CÓPIA DE UMA CÓPIA DE UMA CÓPIA
Isso vai para além da internet ou das redes sociais. É só ver a quantidade de reboots, remakes, live actions e franquias que a indústria cinematográfica está lançando. Das 10 maiores bilheterias do mundo em 2025, seis foram continuações de franquias já existentes, duas foram adaptações de videogames para as telas e uma, um drama baseado em uma franquia de esportes.
A cultura hiperotimizada pode parecer criar uma abundância de produtos, mas é mais estagnada do que nunca. Na visão do Office of Applied Strategy: “a cultura se tornou tão autoconsciente, automimética e autorreferencial que pode gerar infinitas variações de si mesma”.
O paradoxo é que essa repetição convive com um desejo crescente por diferença. Segundo o estudo da Página 3, 72% dos brasileiros gostariam de ser mais diferentes dos outros. Para as pesquisadoras, há fagulhas de esperança.

“Ainda não chegamos em um momento em que teríamos zero autonomia. Agora é a hora de parar e pensar criticamente, fazer exercícios de identidade", diz Georgia.
Para ela, não se trata de deixar de usar IA, ou de voltar para a produção completamente orgânica de um texto, por exemplo, mas de criar espaços para a identidade e para o pensamento crítico. As pesquisadoras sugerem rituais mundanos como desacelerar, entrar em contato com outras pessoas e tirar o selo de IA da nossa própria mente.
“O futuro é sobre quem souber ser mais de si mesmo e conseguir pensar por si só", resume Georgia.