Os gerentes de IA não remunerados
Como as empresas estão criando uma nova classe de trabalhadores invisíveis entre a futurofobia e a futurotopia

Você já parou pra pensar que talvez tenha sido promovido a babá sem aviso?
São 3h16 da manhã e você acorda pensando no relatório que a inteligência artificial (IA) "fez" pra você ontem. Não por gratidão, mas por ansiedade. Porque sabe que vai passar a primeira hora do dia corrigindo os erros que ela cometeu, explicando contextos que ela não entendeu, ajustando nuances que ela ignorou. E depois vai apresentar o trabalho como se fosse dela.
Bem-vindo ao paradoxo dos times híbridos. Você não ganhou um colega inteligente. Ganhou um dependente digital altamente sofisticado.
A pesquisa Panorama 2025 da Amcham Brasil mostrou que 67% dos empresários veem a IA como a tendência mais disruptiva do ano. Mas só 28% sentem que suas empresas estão prontas. É como se todo mundo estivesse correndo pra adotar um filho digital sem ter lido o manual de instruções.
Marco Argenti, CIO da Goldman Sachs, previu que logo teremos "a capacidade de criar colegas de IA sob demanda". Jensen Huang, da NVIDIA, foi mais direto: o departamento de TI vai virar o RH dos agentes de IA.
Mas aqui está o que eles não disseram: quem vai ser o RH dos humanos que cuidam desses agentes?
O TAMAGOTCHI CORPORATIVO
Porque por trás de cada "agente autônomo" há alguém explicando como o mundo funciona, corrigindo desvios, ajustando parâmetros, supervisionando resultados. A Asana mostra que 53% do tempo dos trabalhadores do conhecimento já é gasto em busy work, tarefas repetitivas, administrativas, operacionais.
A promessa era que a inteligência artificial eliminaria isso. A realidade? Só trocamos o nome: agora chamamos de bot work, o novo operacional de quem treina, alimenta e vigia sistemas que juram ser autônomos, mas precisam de babá em tempo integral.
O estudo "Da Futurofobia à Futurotopia", do Teach the Future Brasil, mapeou uma geração que vive entre o medo do amanhã e a urgência de construí-lo. 72% deles sentem ansiedade ligada à tecnologia. Uma participante resumiu: "A internet é uma gangorra. Uma hora me inspira. Outra me derruba."
Eles acreditam mais em si do que no contexto onde vivem. E agora esse contexto inclui ser responsável por fazer a IA funcionar, sem título, sem reconhecimento, sem compensação.
O CONTRATO INVISÍVEL
Não estamos falando só de uma nova ferramenta. Estamos vendo o surgimento de uma nova classe profissional: os AI managers, pessoas cuja principal função virou gerenciar sistemas que deveriam ser autônomos.
Estamos vendo o surgimento de uma nova classe profissional: os AI managers
Esses profissionais não ganharam um cargo novo. Não receberam aumento. Não assinaram aditivo. Só acordaram um dia e perceberam que metade do tempo era gasto ensinando pra uma máquina como fazer o que ela já deveria saber.
A Wiley conseguiu cortar em 50% o tempo de onboarding com agentes de IA. ROI de 213%. Mas quem treinou esses agentes? Quem monitora? Quem corrige? Os mesmos funcionários que faziam onboarding manual agora fazem onboarding da inteligência artificial. O tempo "economizado" não desapareceu, só mudou de nome e de lugar.
A FRICÇÃO REVERSA DA EFICIÊNCIA
Já escrevi aqui na Fast Company sobre a fricção reversa — quando uma tecnologia criada pra simplificar acaba complicando. Nos times híbridos, essa fricção é mais silenciosa, mas igualmente corrosiva.
O analista que antes gastava duas horas num relatório agora passa uma hora configurando a IA e outra revisando o que ela gerou. Na planilha, ganhou uma hora de produtividade. Na prática, trocou trabalho criativo por trabalho de supervisão.
Se no mundo físico a digitalização mal feita transformou clientes em caixas não remunerados, no mundo corporativo a IA apressada está transformando profissionais em babás de algoritmos não remuneradas.
A pesquisa da Randstad aponta que 71% dos profissionais com habilidades em IA são homens. Só 29% são mulheres. Um gap de 42 pontos percentuais. Estamos criando uma nova desigualdade: alguns profissionais viram "tradutores" entre humanos e máquinas. Outros ficam à margem.
O Gartner estima que até 2028, um terço das interações com IA generativa envolverá agentes autônomos. Mas "autônomo" é uma palavra traiçoeira. Um carro autônomo ainda precisa de estrada, sinalização, manutenção. Um agente de IA ainda precisa de supervisão, configuração, correção humana constante.
Só que ninguém está construindo essas estradas. Jogaram os agentes no trânsito e deixaram o motorista humano se virar.
O PARADOXO DA PRODUTIVIDADE
As mesmas empresas que celebram métricas de eficiência estão criando camadas invisíveis de ineficiência. Enquanto os dashboards mostram "tempo economizado com automação", os funcionários trabalham mais horas cuidando dos sistemas que deveriam economizar tempo.
Os funcionários trabalham mais horas cuidando dos sistemas que deveriam economizar tempo
Os dados da Amcham trazem um detalhe curioso: 57% dos empresários pretendem contratar mais gente em 2025, mesmo com a adoção massiva de IA. Isso não é contradição. É diagnóstico.
As empresas estão descobrindo que precisam de mais pessoas, não menos, pra fazer a IA funcionar. Mais supervisores. Mais configuradores. Mais tradutores. Mais gerentes de IA não remunerados.
O futuro dos times híbridos não é sobre humanos e máquinas trabalhando lado a lado. É sobre humanos trabalhando pra que as máquinas trabalhem, enquanto fingimos que elas são autônomas.
DA FUTUROFOBIA À FUTUROTOPIA
Mas a história não precisa acabar aqui. O próprio estudo brasileiro projeta uma saída: a futurotopia, um futuro onde a tecnologia serve à humanização.
Nessa futurotopia corporativa, cuidar de IA é uma especialidade reconhecida e valorizada. Os "AI managers" têm título, estrutura de carreira e remuneração adequada. A supervisão de sistemas inteligentes é vista como o que realmente é: trabalho especializado que exige conhecimento técnico, sensibilidade humana e responsabilidade estratégica.
Toda revolução tecnológica cria novas formas de trabalho. A diferença é que desta vez estamos criando trabalho invisível. E trabalho invisível é, quase sempre, trabalho não remunerado.
Está na hora de tornar visível o que sempre esteve lá: o humano por trás da máquina. A pessoa que ensina o algoritmo a ler contexto. Que cuida pra que ele não quebre. Que traduz o mundo pra uma linguagem que ele entenda.
Alguém tem que alimentar o Tamagotchi corporativo. A pergunta não é se isso vai acontecer, já está acontecendo. A pergunta é: por que esse alguém é sempre você? E por que ninguém está pagando por isso?
Entre a futurofobia e a futurotopia existe uma escolha. Podemos continuar fingindo que os agentes são autônomos e sobrecarregando gente com tarefas invisíveis. Ou podemos reconhecer que cuidar da inteligência artificial é trabalho real. E trabalho real merece nome, estrutura, valorização.
O futuro dos times híbridos não está nas mãos das máquinas. Está nas mãos de quem cuida delas. E essas mãos merecem ser vistas, reconhecidas e remuneradas pelo que realmente fazem: manter a ilusão da autonomia artificial funcionando.