A arquitetura da regeneração, segundo Marko Brajovic

O arquiteto croata-brasileiro volta à questão que tentou responder na Bienal de Veneza, em 2021: como vivemos juntos?

Crédito: Atelier Marko Brajovic

Camila de Lira 14 minutos de leitura

O novo projeto de Marko Brajovic é grandioso, mas não envolve desenhos ou maquetes. Abarca movimento, dinamismo e muitas, muitas perguntas. Tudo isso com uma boa dose de aprendizado constante com a maior criadora de tecnologia que existe no mundo: a natureza.

É um projeto com visão clara do futuro e do caminho que deve traçar: de dentro para fora, do mecânico para o orgânico, do industrial para o ancestral. Marko Brajovic quer regenerar o mundo.  Nem que seja uma pessoa de cada vez.

“A regeneração, para não virar só uma conversa, precisa vir de nós mesmos”, comenta o arquiteto e designer croata naturalizado brasileiro.

Para ele, a transformação do modo de se produzir, tão necessária para o futuro da nossa espécie, começa com perguntas do tipo: como estou no mundo? Como trabalho? Para quem trabalho? Qual o impacto daquilo que faço?

Todas as perguntas do âmbito pessoal acabam ressoando para o mundo. “Porque somos natureza”, diz. É que Brajovic, um dos principais pesquisadores de bioarquitetura no Brasil, é especialista em biomimética, área que estuda estratégias e soluções a partir da natureza.

Nesta conversa exclusiva com a Fast Company Brasil, o arquiteto volta à questão que tentou responder na 17ª Bienal de Veneza, no ano passado: como vivemos juntos?

Ele fala ainda sobre biomimética, biofilia e regeneração do meio ambiente. Tudo isso acontecendo fora da “agenda ESG”. Na sua visão, “a necessidade de evolução da nossa espécie transcende as necessidades do mercado.”

A arquiteto e designer croata naturalizado brasileiro Marko Brajovic

Sustentabilidade e ESG são termos muito usados, hoje, no mundo corporativo. Até que ponto eles fazem sentido?

Acho que entra num território dialético de termos. ESG, sustentabilidade, regeneração, muitas vezes são abordados de um ponto de vista muito material da nossa relação com a natureza. Prefiro falar de regeneração. Mas, na prática, esses três termos acabam indo para o mesmo lugar quando entram dentro do sistema e na dialética do capital. Eles justificam ciclos produtivos fechados dentro de uma lógica industrial.

Minha crítica sobre esses termos é construtiva, traz perguntas que não têm respostas. É importante evoluir, inovar a nossa relação com a gente mesmo, com a nossa espécie, com o nosso processo e em como habitamos o planeta.

A inovação vem em reconsiderar esses termos por uma ótica que transcende a visão puramente utilitária da natureza. A inovação em todos os âmbitos, do fazer, do se relacionar, vai nascer quando evoluirmos nossa percepção coletiva considerando todas as outras espécies, não só o ser humano. Uma visão menos antropocêntrica.

Biblioteca comunitária flutuante Mamori, noAmazonas (Créditos das fotos: Atelier Marko Brajovic

O que o levou a mudar o seu olhar em relação à natureza?

No momento em que a gente começa, algo atrai a olhar para  a natureza como fonte de inspiração, como plataforma para trabalhar, viver e criar. Tem a ver com olhar para nós mesmos. Porque somos natureza. Não sei exatamente quando isso aconteceu no âmbito pessoal,  mas, na minha profissão, foi nos anos 2000, na Costa Rica.

Na época, morava em Barcelona e trabalhava muito no mundo digital, criando scripts que mimetizavam os sistemas de crescimento e evolução de morfologias naturais para aplicar isso no design. Uma área da biomimética aplicada para gerar formas, e não desenhar formas.

A flora e a fauna são cases de sucesso de design.

Então chega uma cliente que pede uma casa inspirada em uma das suas músicas favoritas. Estávamos desenvolvendo códigos para gerar formas a partir de tons, de melodias. Ela pediu que levássemos essa ideia para sua casa. Ficamos um ano no Caribe pesquisando tudo sobre o local, começando pela comunidade indígena Naso, que vive entre o Panamá e a Costa Rica.

Vimos que a tecnologia de trançados tradicionais podia gerar formas muito complexas. Eles trançavam formas em lugar de construí-las, de cima a baixo, num processo morfológico construtivo que poderia ser traduzido para o mundo digital. Foi um insight muito forte e que sigo até hoje: como transladar do digital para o manual, como valorizar o artesanal por meio de um design completamente digital.

Também percebemos que o material que trabalhávamos nessa construção, o bambu, era um ser vivo, altamente inteligente. Me dei conta de que aquilo que nós, designers, olhamos como materiais são, na verdade, mestres. São seres vivos altamente evoluídos, muito mais que o ser humano.

Bambu como material de construção

Esse ser, o bambu, me fez olhar para a natureza como mestre, como a grande inteligência e o grande ensinamento.  E nasceu a curiosidade de começar a entender a natureza como um designer de 3,8 bilhões de anos. O que ela pode ensinar? Como estruturar sistemas a partir do que já existe? Como evoluir? Como se adaptar? Como criar padrões, sistemas de cor que não sejam por pigmento, mas por refração?

Há uma infinidade de tecnologia na natureza. O Brasil tem uma das maiores biodiversidades do mundo, o que significa que vivemos no maior laboratório de tecnologia e design do mundo. A flora e a fauna são cases de sucesso de design. Mas como conseguimos ler, interpretar e aprender com essa inteligência? Não só para o design, mas também para organizar as empresas.

Como podemos aprender marketing com as flores? Elas são o maior case de marketing do mundo natural, e por meio de design e cooperação. Quando falamos da natureza, ela se baseia em sistemas cooperativos. E isso muda a nossa inspiração.

Como vê a profissão do arquiteto e do designer, tendo em vista que a natureza é mestra?

O aprendizado é constante e a experimentação, fundamental. É preciso aprender no dia a dia com biólogos, engenheiros, programadores, com os povos ancestrais, com os clientes. Nossa inovação nasce a partir de colaborações muito frutíferas.

Mais que tudo a biomimética me fez chegar num entendimento sistêmico do mundo e da nossa profissão como arquitetos e designers. Não temos que fazer mais parte de uma visão linear e industrial do mundo, onde executamos o briefing e entregamos a solução, não sabendo de onde vem os materiais ou como eles se relacionam com o meio e evoluem.

Hoje, essa visão industrial é obsoleta. O human centered design é obsoleto. Não faz mais sentido a visão linear e industrial da arquitetura. Estamos na época da biotecnologia, onde a interação entre todos os sistemas gera uma visão da complexidade cíclica. Uma visão na qual arquitetos, designers e todas as outras profissões têm conhecimento de para quê o produto existe, de onde ele vem, para onde vai.

Fazemos parte do ciclo criativo e produtivo. Essa é a grande transformação que está acontecendo, inevitavelmente, em todas as áreas. A arquitetura e o design não são diferentes. Temos que entender que o nosso cliente final não é um consumidor, é um ser humano ciente do que está desejando e criando. E pensar que não estamos desenhando só para seres humanos, mas para um mundo muito maior.

O que é belo, para você? E o que é funcional?

Gosto do bonito, acho que o bonito é funcional. O funcional é bonito na natureza. Essa distinção entre forma e função é uma visão modernista e industrial do design. Uma distinção baseada na funcionalidade produtiva em série, nas indústrias.

Quando entendemos a revolução pós-industrial, conseguimos produzir peças diferentes, primariamente por meio da robótica. Conseguimos gerar materiais – couro sintético, bioplástico, nanotecnologia, novos materiais que valorizam o ancestral dentro do ciclo de uso. Acho que essa evolução será gradual.

A inovação não está, necessariamente, dentro dos processos. Ela não tem como nascer se não se contempla a complexidade biológica e sociocultural. Não temos mais como separar as disciplinas. Inovação não é só tecnológica, ou só biológica, ou social. Deve haver um entendimento sistêmico por parte de arquitetos e designers para intervir nessa relação de liberdade e ter responsabilidade em todos os territórios.

É preciso ter responsabilidade no ciclo todo. Estarmos todos no mesmo barco, num planeta finito, onde tudo acontece dentro. Não existe fora nem para jogar lixo, nem para trazer os materiais. Isso nos coloca no lugar de responsabilidade, mas também de liberdade de nos conectar de ponta a ponta.

Você faz conexões com outros arquitetos, dá cursos na Amazônia. Pensa em fazer com que a ideia da biomimética chegue para mais arquitetos? Ela pode virar uma “nova Bauhaus”?

Já existem universidades investindo nessa visão. Mais que tudo, a biomimética virou um kit de ferramentas e um plug in de inovar a visão do que é arquitetura em uma época pós-industrial, na qual o Modernismo já tem o mesmo valor do Barroco no nível histórico, já faz parte do passado.

Quais são as novas linguagens, as novas tipologias, em uma época de mudanças climáticas, sociais, culturais e políticas muito diferente de 50 anos atrás? Como a arquitetura responde a esse mundo? Não tenho essas respostas, porque todos nós fazemos parte dessa transformação, cada um com o seu próprio caminho.

Casa Macaco, Paraty (RJ)

Mas acho que não tem lugar para um novo ismo, né? O modernismo, o biomimetismo.

Acho que nossas profissões precisam  se libertar desse lugar funcional, de simplesmente fazer parte de um job description de uma cadeia de produção, e entender onde podemos colaborar e participar em outras áreas.

O caminho da inspiração na natureza, para mim, é óbvio. Não vejo outro para a nossa espécie que não seja se alinhar com as forças da natureza, se adaptar a uma natureza em transformação. Temos que aceitar que a transformação e a adaptação fazem parte da vida.

O novo paradigma da arquitetura e do design será a capacidade de antecipação que o ser humano tem das mudanças e transformações, além de criar sistemas, lógicas e soluções que consigam se adaptar e evoluir.

Casa Asha, Paraty (RJ)

As faculdades estão abordando esse caminho? Os jovens encontram isso na escola de arquitetura ou vão ter que procurar?

É uma grande mudança evolutiva, de uma visão mecânica para uma visão orgânica do mundo. Temos instrumentos colocados à disposição no ambiente acadêmico. Faço cursos na Amazônia e vem pessoas de todo o mundo estudar.

O pessoal vem preparado para esse mindset, já dominam os softwares paramétricos com códigos evolutivos. Muitos são alunos e alunas que têm uma visão de inovação da natureza como caminho para se inspirar e também para a área profissional, sem distinção.

Dois cases recentes: alunos de áreas com idades entre 20 e 30 anos, que já vem com o propósito de mudar a percepção do mundo – e isso transcende a área profissional. É uma percepção de mundo que, no caso deles, muda a forma como se alimentam, como se relacionam. Sem separar o que é profissão e o que é estilo de vida.

Essas pessoas não têm mais aquele objetivo de que é preciso trabalhar no mercado e só depois fazer o que acreditam. Vejo essa divisão como algo analógico. Essa geração já vem com uma percepção clara de mudança de paradigma de vida que transcende tudo.

A inovação não tem como nascer se não se contempla a complexidade biológica e sociocultural.

Outro exemplo de participantes dos nossos cursos são os arquitetos um pouco mais velhos, que trabalharam a vida toda no mercado e viveram a quebra de paradigma. É um processo mais complexo de mudança, não tão binomial.

Às vezes, pode ser apenas para colocar uma pequena implementação na empresa em que trabalham. Já é uma evolução. Porque pequenas evoluções em alguém com a carreira mais avançada que exerce maior influência podem gerar resultados igualmente maiores.

O terceiro exemplo, é de uma amiga querida da Croácia, que me ligou há algumas semanas, contando que a filha de 13 anos quer estudar os conceitos de biomimética na sua futura profissão.

Falei de várias gerações, mas não importa a idade. Em qualquer momento, é válido entrar no questionamento: para quem estamos trabalhando? Com quem estamos trabalhando? Para que estamos trabalhando?

São perguntas que, na época em que os profissionais eram mais voltados para o mercado, não se faziam. Agora, para quem começa a trabalhar e a pensar em atuar para o bem da vida, são questões que afloram.

Casa Trikona, Paraty (RJ)

A regeneração pode ir além do discurso ambiental?

Para não virar só uma conversa, uma justificativa, como está sendo tratada a sustentabilidade precisa vir da  gente. São regenerações que acontecem em nós mesmos, em pequenas grandes coisas.

Para quem trabalhamos? Para quem não queremos trabalhar? Com quem gostaríamos de trabalhar? E o que é trabalho, de toda a forma? A regeneração não tem como não nascer primeiro de nós, de nos entendermos como natureza, como parte desse fluxo.

Como nos relacionamos com nosso entorno? Como são nossos espaços de trabalho? Como é a minha postura? Isso depois se expande para um aspecto maior: como chego ao trabalho? O que estou gastando e quais os efeitos desse deslocamento? Quais são os impactos do meu trabalho no mundo? Responder essas questões cria ressonância. Vem do momento de nos entendermos como parte da natureza, da regeneração que começa a se ampliar para todas as áreas.

Biofilia é um alinhamento com a vida e com a natureza, com o ato de começar a perceber que precisamos ser mais conectados com a natureza. Isso floresce em muitas tendências, como começar a decorar com plantas, ter um jardim interno, colocar plantas no escritório.

Isso pode ser visto como superficial, mas é positivo, porque permeia nosso cotidiano. Também resulta em soluções de arquitetura de interiores que contemplam mais as áreas. Tudo é válido quando começamos a nos conectar com a natureza.

Escola comunitária no Amazonas

No ano passado, você apresentou o projeto ROOTS, na Bienal de Veneza. A principal questão levantada no evento foi “como vamos viver juntos?”. Qual foi a sua resposta?

Foi outra pergunta: como vivemos juntos com todas as outras espécies? Como conseguimos aumentar nosso mundo? O mundo ocidental é muito pequeno, contempla apenas seres humanos. É um mundo solitário e triste.

Quando a gente vive em um mundo que contempla todos os outros seres, quando valorizamos todos os seres, nós expandimos nosso mundo. E, quando expandimos o mundo, aumenta a chama do futuro.

Temos que enxergar e sonhar esse futuro para ele acontecer. Conseguimos imaginar futuros enormes quando o nosso mundo é igualmente enorme, e ele é assim quando contempla outros seres. Nosso design faz parte desse mundo e de desenhar os mundos grandes.

Você tem um olhar esperançoso do futuro. É difícil mantê-lo, tendo em vista os alertas de emergência climática?

O mundo pequeno é uma ilusão, o mundo real é bem maior. Essa estratégia emergencial  não deu muito certo em termos de marketing ambientalista. Hoje há outras pautas e outras formas de entender as urgências do mundo de um ponto de vista real, de conseguir interagir e enfrentá-las. É necessário, sim, disseminar informações [sobre a emergência climática], mas por outra narrativa, para não colocar todo mundo em estado de paralisia.

É importante destacar que a inteligência das culturas ancestrais vive e sobrevive há milhares de anos. Milhões de pessoas, em grandes civilizações, que cultivavam agroflorestas.

É fundamental valorizar a inteligência e o conhecimento que vem a partir do alinhamento com a natureza, da força da natureza e da sua abundância. Um conhecimento altamente vivo e presente na Amazônia.

Quais são as questões sobre biomimética que você não vê sendo discutidas?

Peça inspirada nas raízes de manguezais

Regenerar a própria forma de trabalhar, ter confiança na regeneração, confiança de seguir os próprios objetivos, de seguir a conexão. Regenerar o modo de viver é um trabalho constante. Regenerar a própria forma de trabalhar é algo que transcende o mercado.

O mercado consegue ler apenas o que já aconteceu. Só que a necessidade de evolução da nossa espécie transcende as do mercado. Cria novas necessidades.

Uma série de projetos que criamos e estamos criando com nossos clientes não foram baseados em pesquisa de mercado. Não nasceram porque o mercado pedia. Nasceram do lugar intuitivo de mudar as formas de nos relacionar, criar novos lugares e novas experiências. É isso o que mais me inspira. São essas pessoas. E são pessoas que não estão preocupadas com o que o mercado está sentindo.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais