“A função de uma universidade é estar a serviço da comunidade”

Thomas Heimann, reitor da Ulbra, conta como é administrar um campus que virou uma “cidade” com 7 mil desabrigados no RS

Crédito: Marcelo Monteiro/ Ulbra

Mariana Castro 6 minutos de leitura

Em 72 horas, o campus da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas, município do Rio Grande do Sul situado a 14 quilômetros de Porto Alegre, virou uma espécie de pequena cidade.

Diante dos alagamentos depois das fortes chuvas, o espaço com extensão de dois quilômetros se transformou em um centro de acolhimento para sete mil vítimas das enchentes. De acordo com o Censo do IBGE (2022), quase metade dos 5.570 municípios do país têm até 10 mil habitantes.

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O abrigo na universidade conta com posto de saúde, quartel, heliponto, farmácia, cozinha, grupo de apoio psicossocial, triagem para as doações e um centro de identificação dos abrigados.

Um comitê de gestão de crise foi formado para administrar o local. Além da equipe da Ulbra, inúmeros voluntários trabalham para que tudo funcione, com o apoio dos órgãos públicos.

Nesta entrevista para a Fast Company Brasil, o reitor da Ulbra, Thomas Heimann, conta como tem sido a administração do centro de acolhimento e o papel da universidade neste momento de tragédia.

Crédito: Marcelo Monteiro/ Ulbra

Fast Company Brasil –⁠ ⁠O senhor passou de reitor de universidade a “prefeito” de uma pequena cidade, de uma hora para outra. Como foi esse processo de transformação do campus em local de acolhimento?

Thomas Heimann – Assim que as águas começaram a subir em Canoas, ainda na sexta-feira (dia 3 de maio), a Ulbra foi acionada pela prefeitura para ceder um espaço para abrigar cerca de 300 a 400 pessoas vitimadas pela enchente. Atendemos de pronto.

Porém, nas 72 horas que se seguiram, em torno de seis mil a sete mil vítimas das enchentes chegaram até a Ulbra – por helicópteros, caminhões, carros, ônibus e a pé.

Além da equipe da Ulbra, inúmeros voluntários trabalham para que tudo funcione, com o apoio dos órgãos públicos.

A Ulbra foi disponibilizando novos espaços, sendo que quase dois terços de sua estrutura física foi cedida, voluntariamente, para abrigar não apenas as vítimas da enchente, mas também voluntários, equipes de resgate, a Força Nacional do SUS, conselho tutelar, segurança pública, centro de apoio psicossocial, entre outros.

Pode-se dizer que foi uma verdadeira operação de guerra, que mobilizou não apenas colaboradores da Ulbra como também parceiros da instituição e muitos voluntários da sociedade civil, além de servidores públicos municipais.

FC Brasil – ⁠Como fazem a gestão do centro de acolhimento emergencial que acolhe cerca de sete mil pessoas, para que tudo funcione? 

Thomas Heimann – A Ulbra instituiu um comitê de gestão de crise, com colaboradores da mantenedora e da universidade. Porém, diversos voluntários, com expertises específicas, têm participado do planejamento das ações, bem como da sua execução, em alinhamento com os órgãos públicos.

Foram designadas pessoas como pontos focais para cada uma das áreas de atendimento: recebimento de doações, triagem, cozinha, distribuição de alimentos, posto de saúde, atendimento psicossocial, farmácia, infraestrutura e serviços, coordenação de prédios/ abrigos, centro de identificação/informação dos abrigados, entre outros.

Há muito a avançar no que tange à comunicação entre as diferentes equipes, como seria de esperar em um abrigo que se estende por quase dois quilômetros de extensão, em seis espaços para pessoas e mais um para animais.

FC Brasil –⁠ Como garantir a segurança das pessoas que hoje estão vivendo no abrigo?

Thomas Heimann – A partir de domingo (5 de maio), passou a haver policiamento ostensivo das forças de segurança em todo o campus, composto pela Polícia Civil, Guarda Municipal, Brigada Militar e equipes de segurança privada, em um contingente bastante numeroso, que trouxe um clima de segurança, paz e tranquilidade.

Obviamente que momentos de discórdia e conflitos interpessoais estão dentro de um parâmetro de normalidade daquilo que acontece no cotidiano de nossas vidas. Até porque estamos vivendo aqui “a vida como ela é”, com as realidades individuais, familiares e interpessoais de qualquer comunidade ou grupamento social.

Crédito: Bianca Costa/ Ulbra

Mas foram estabelecidos quartéis dentro do campus. Está se resguardando o acesso das pessoas de fora para dentro. Há policiamento no local, há viaturas da Força Nacional de segurança. Ou seja, os órgãos públicos estão disponibilizando tudo aquilo que existe de recursos, por reconhecer que essa nova cidade dentro da Ulbra merece esse cuidado.

Também reforça a sensação de segurança o fato de que há inúmeros órgãos de saúde, como a Força Nacional do SUS, a Defesa Civil de diversos municípios e a Cruz Vermelha, que se estabeleceram ali e circulam pelos cinco abrigos. 

FC Brasil – ⁠Quais são as maiores dificuldades que estão enfrentando e o que precisam para superá-las?

Thomas Heimann – O principal desafio é proporcionar a todos os que estão abrigados dignidade e qualidade de vida durante sua estadia no campus, o que envolve prover as necessidades básicas de alimentação, higiene e limpeza, segurança, saúde física e mental, conforto e bem-estar geral. Isso exige a manutenção do acolhimento e de toda uma estrutura de atendimento, que permeia todas as necessidades dos abrigados.

"estamos vivendo 'a vida como ela é', com as realidades individuais, familiares e interpessoais de qualquer comunidade."

A infraestrutura de um campus universitário não é construída para moradia das pessoas, o que gera um sem número de demandas, como limpeza dos espaços, suprimento de água, capacidade energética, espaços para banhos, saneamento etc.

O desafio também inclui o planejamento, por parte dos órgãos públicos, para o gradativo retorno e reassentamento dos desabrigados para os seus respectivos bairros e moradias.   

FC Brasil – ⁠De que forma o senhor imagina que essa experiência vai afetar não só a universidade como toda a comunidade em torno dela quando a Ulbra voltar a funcionar como instituição de ensino? Quais os principais aprendizados que leva desse acontecimento?

Thomas Heimann – As experiências que todos estamos vivendo com esta tragédia certamente carregam um potencial transformador, de fortalecimento e resiliência pessoal, institucional e social. A Ulbra, como instituição de ensino, acredita no poder transformador da educação, capaz de mudar vidas e realidades sociais.

Isto se alinha com a função precípua de uma universidade, que é a de estar a serviço da comunidade a que pertence, não apenas formando profissionais de excelência, mas promovendo com ética, cidadania e responsabilidade o desenvolvimento socioeconômico das comunidades.

Acredito que, apesar das perdas e de todo o sofrimento vivenciado, a sociedade gaúcha irá se reconstruir e sair mais forte do que antes da tragédia. Mas isso só irá ocorrer com a força de cada um de nós, e de todos que estão, com empatia, estendendo suas mãos em amor e solidariedade ao povo gaúcho.


SOBRE A AUTORA

Mariana Castro é editora executiva da Fast Company Brasil. saiba mais