Aplicativo gaúcho feito em menos de 48 horas ajuda no resgate de 21,5 mil pessoas

Criado por professores da UniRitter para ser um “Uber de resgates" app usou geolocalização e mensagens para organizar operações de salvamento

Crédito: Fast Company Brasil

Camila de Lira 12 minutos de leitura

Nem todos os heróis usam capa. Às vezes, eles criam aplicativos. Em meio à catástrofe climática do Rio Grande do Sul, um grupo de voluntários gaúchos se uniu e, em menos de dois dias, lançou uma solução digital para centralizar informações sobre o resgate das vítimas.

A iniciativa chegou rápido a quem precisava: quase 30% do total de resgates realizados no estado foram feitos com ajuda da plataforma chamada, agora, de Salva RS!.

O grupo de 16 pessoas – entre eles professores do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), profissionais de comunicação, publicidade, design e tecnologia – ajudou a viabilizar 21,5 mil resgates nos últimos dias.

A iniciativa espontânea organizou os dados de quem estava em abrigos, conectou voluntários de resgate a rotas seguras e apoiou a entrega de doações do país todo às regiões mais atingidas pelas águas. Nos bastidores das cenas que tocaram o Brasil e se tornaram símbolo da resistência e da esperança do povo gaúcho está o uso de tecnologia, inteligência artificial e muita inteligência humana.

"UBER DE RESGATES"

Tudo começou por causa de uma mensagem em um grupo de WhatsApp. Uma não, várias. A professora de comunicação da UniRitter Mely Paredes estava atenta à movimentação de grupos diferentes de clubes de embarcações em Canoas e em Porto Alegre. Mestre em políticas públicas acompanhava as trocas de pedidos de resgate no aplicativo de mensagem.

Parte da aflição de Mely era justificada: ela estava isolada em São Paulo, impedida de voltar para Porto Alegre. Acompanhada por sua filha de sete anos, a comunicadora estava na cidade a trabalho, mas teve sua passagem cancelada. O aeroporto Salgado Filho suspendeu os voos no dia 4 de maio, justamente a data de volta de Mely.

Já na sexta-feira (3 de maio), quando 265 municípios tinham sido afetados pelas enchentes e o lago Guaíba, que banha Porto Alegre, ultrapassava o nível de 4,7 metros, Mely notou que a quantidade de desinformação e de mensagens repetidas replicadas nos grupos de WhatsApp criavam ainda mais caos.

Inundação em Porto Alegre (Crédito: Gilvan Rocha/ Agência Brasil)

A mesma mensagem com pedido de ajuda era enviada para até cinco grupos diferentes. “O risco era as pessoas com barco irem todas para o mesmo lugar, atendendo a essas mensagens, enquanto outras precisam de ajuda”, conta Mely. Eis que surgiu a ideia de criar um formulário para centralizar os pedidos e, de certa forma, organizar a ação dos civis.

Em poucas horas, ela já tinha entrado em contato com a sua coordenadora do curso de tecnologia da informação, Sandra Garcia Henriques. A ideia dos formulários se transformou em outra: um aplicativo para otimizar o fluxo de resgates.

No sábado (4 de maio), Sandra conectou Mely com Jean Paul Lopes, líder técnico do Ânima Hub (hub de pesquisa em inovação aberta do grupo Ânima) e professor de engenharia de software, banco de dados e sistema de informação da UniRitter.

Na conversa, Mely pediu para que Lopes fizesse um “Uber de resgates”. O engenheiro aceitou o desafio. Mesmo sabendo que seria complicado e quase impossível colocar um aplicativo inteiro em tempo hábil, ele se sentiu aliviado.  “Pelo menos ela tinha desistido da ideia de usar o forms”, diz o especialista em software.

SEM TEMPO PARA PENSAR, SÓ PARA AGIR

Entre a primeira conversa de Mely sobre a iniciativa até a definição dada pelo professor Lopes, o número de desabrigados já tinha passado de 32,2 mil para 82,5 mil. As chuvas não cessavam. O desenvolvedor de sistemas resolveu fazer algo que não fazia há tempos: "codar" (programar).

“Não tinha tempo de fazer sprint, de fazer scrum [metodologias de trabalho], de chamar meus alunos para desenvolver o aplicativo. A água subiu em horas. Em Eldorado do Sul, a cidade passou de 50% para 100% embaixo d’água da manhã para a noite”, lembra Lopes.

Morador de Gravataí, cidade da região metropolitana de Porto Alegre menos afetada pelas enchentes, ele sabia que teria infraestrutura para colocar no ar um sistema online. Com “assistência” do Copilot (inteligência artificial do GitHub para programadores), Lopes montou a estrutura de código em menos de 12 horas. Às 3 da manhã de domingo (5 de maio), o web aplicativo preconizado pelo grupo estava no ar.

Nele, era possível pedir um resgate e ver quais eram os resgates possíveis de se fazer na região. O Salva RS! tem uma área para que as vítimas preencham um formulário com dados de localização e a quantidade de pessoas e animais em perigo.

“Tem uma parte para informar se há idosos, pessoas com deficiência ou crianças no grupo. Assim, os resgatistas conseguem entender quais embarcações levar”, explica Mely.

Do lado dos resgatistas, o sistema oferece visão de quais são os pontos de atenção, os resgates mais urgentes e as rotas a serem seguidas, além de um indicador que mostra quais são as operações acontecendo no momento. Com um design simples, sem logo ou muitas cores.

O Salva RS! foi ao ar com pequenas alterações em relação ao projeto inicial. Não era um “Uber de resgates”, até porque, não se trata de um aplicativo, mas uma aplicação web. “Até o app ficar pronto e ser aprovado nas lojas de aplicativo, a enchente já estaria acabando”, diz Lopes.

Havia o desafio de conectividade e aparelhos por parte de quem pedia e de quem oferecia resgate. Afinal, o 4G, o 5G e a bateria do celular não são exatamente prioridades durante uma calamidade climática. E também a questão da usabilidade: quem vai parar para baixar um aplicativo enquanto está lutando para sobreviver? Ou para salvar alguém?

Outro detalhe: a plataforma ainda não tinha nome, apenas o “apelido” de “SOSRS”, e estava no domínio pessoal de Lopes. Até mesmo o uso da API de mapas do Google era conectado à conta do professor. A cobrança é feita a partir de carregamentos de mapas. "A fatura que venha depois. O timing é de salvar mais pessoas nas próximas 12 horas”, afirma.

INTELIGÊNCIA NATURAL

A agilidade para colocar a plataforma no ar foi replicada na rapidez com que os voluntários passaram a distribuir os links. A plataforma começou a atuar em Canoas e depois passou a trabalhar em Porto Alegre e na região Metropolitana. Desde que entrou no ar, o sistema já passou por 42 atualizações. Todas para alterar pequenas funcionalidades, com base no feedback de usuários.

No terceiro dia de operação, a plataforma já era usada também por oficiais da Defesa Civil e da Força Aérea. Andrei Nowa, co-sócio da produtora, Eyxo fez parte do time de voluntários. Os contatos que o publicitário tinha nessas áreas ajudaram o sistema a ser utilizado em operações de resgate.

No começo da semana passada, mais de mil pessoas trabalhavam nos salvamentos apenas na cidade de Canoas.

Em menos de 15 dias, o Salva RS! se uniu a diferentes iniciativas de captar informação e passou a oferecer dados de abrigos para permitir que famílias se reencontrassem. O sistema também tem informações de cães e gatos resgatados, igualmente em parceria. Abastecida com informações sobre localização e quantidade de pessoas resgatadas, a aplicação está evoluindo para se tornar um guarda-chuva de dados precisos sobre o desastre ambiental.

Mas o que fez a diferença foi a coordenação dos voluntários em se comunicar com conhecidos, familiares, amigos de amigos, conhecidos de colegas. Lopes chama tal qualidade de “inteligência natural”, enquanto Mely diz que é “instinto”.

A RELAÇÃO COM AS PESSOAS MUDA TUDO

A falta de internet e de energia nos pontos de salvamento fez com que, muitos dos pedidos de resgate fossem feitos por familiares ou amigos. Mesmo com o formulário bem estipulado, muitas vezes, as pessoas mandavam os pedidos com observações. Os voluntários revisavam os dados, passando para as autoridades, quando necessário.

Para Mely, o acompanhamento foi essencial para casos de altíssima gravidade. O web app sinalizava a dificuldade dos casos, mas eram os voluntários que ligavam para as vítimas ou familiares para entender a real situação. Eram eles que passavam esses detalhes para os brigadistas.

Um exemplo é o caso de uma idosa em Porto Alegre que estava no oitavo andar com a filha cadeirante. Os barcos não conseguiam chegar até elas e ambas não conseguiam descer, uma vez que o elevador do prédio não funcionava. A triangulação com os voluntários do Salva RS! fez a informação chegar a equipes de bombeiros com helicópteros.

Crédito: João Pedro Ferreira Santos

“A tecnologia foi necessária, mas a aplicação web não dá conta na hora da calamidade. A comunicação, a relação com as pessoas é que muda tudo”, diz Mely. Era uma rede de voluntários focados em tirar o máximo de seres vivos das águas. Pessoas com rádio amador, locais imprimindo os mapas que a aplicação mostrava, gente que coordenava a informação nos pontos de encontro de botes e motos aquáticas.

Gaúcho e gremista, Andrei também estava em São Paulo e, como Mely, estava impossibilitado de voltar para Porto Alegre. Estar fora da zona de enchentes, de certa forma, possibilitou que ambos tivessem luz e internet sem interrupções. Assim, ficavam responsáveis pela comunicação dos resgates mais sensíveis. 

De domingo a quinta-feira, dia 9, Andrei atuou em mais de 500 resgates. “Eu devo ter dormido um total de duas horas nesses dias”, diz o publicitário.

No começo da semana passada, mais de mil pessoas trabalhavam nos salvamentos apenas na cidade de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. O município teve 70 mil casas submersas. Dos 347 mil habitantes de Canoas, 153 mil tiveram que ser retirados de suas casas.

Andrei tem ligação especial com Canoas: é a cidade de sua mãe e foi o lugar em que passou a infância. O publicitário intermediou resgates de amigos de colégio e de pessoas conhecidas. “Era uma tensão muito grande. Eram amigos pedindo resgate dos seus avós, dos seus pais. Notícias de pessoas desaparecidas. Meu celular não parava de tocar, sabia que cada toque era alguém pedindo socorro”, conta. 

ENQUANTO ISSO, EM LAJEADO...

Mely acompanhava os grupos de resgate no WhatsApp porque, em setembro de 2023, um grande amigo e colega tinha visto a mãe perder quase tudo nas enchentes do Vale do Taquari. O colega em questão, que entrou no time de voluntários do SalvaRS é Carlos Viana.

O professor de design da UniRitter mora em Lajeados, principal cidade do Vale do Taquari.  A região, perto da cabeceira de um afluente que leva ao Guaíba, foi uma das mais afetadas pela chuva. Viana viveu na pele as preocupações e impactos da catástrofe climática. 

O voluntário do Salva RS! ficou uma semana sem luz, água e ilhado em Lajeado. A destruição de pontes isolou a cidade no meio da semana, antes mesmo das chuvas chegarem a Porto Alegre. O designer não teve a casa atingida, mas a sua mãe, sim. Ele ajudou a mãe a movimentar os móveis para o segundo andar da casa, depois, ajudou a retirá-la da casa. 

Zona rural de Lajeado (Crédito: Maurício Tonetto/ Palácio Piratini)

A mãe de Carlos mora num bairro da “cota 27”. O indicador de zona de risco leva em conta a posição e a altura do terreno em relação ao rio. Na prática, significa que é uma região que tem risco de alagamento quando o rio chega a 27 metros de altura. Uma marca considerada altíssima, uma vez que o recorde de cheia do rio Taquari tinha sido 29,92 metros, em 1941. 

Em setembro, depois do ciclone extratropical, o rio chegou aos 29,5 metros. Na última semana, o Taquari ultrapassou os 34 metros. “Muitas famílias usaram essa cota do rio como referência, porque as chuvas do ano passado já tinham sido sem precedentes”, conta o professor. 

“A CASA DO VOVÔ AFOGOU”

Foi o que disse Mely para sua filha. Entre uma notificação de resgate e outra, ela recebeu a mensagem de que seu pai estava em segurança, mas que a casa havia sido destruída pela força das águas em São Leopoldo.

A frase, simples porém sincera, foi a maneira que a especialista em comunicação encontrou para explicar à criança o que estava acontecendo. Em dezembro, o pai de Mely, de 67 anos, havia realizado o sonho de sua vida ao terminar de construir a casa própria.

O Rio Grande do Sul de onde Mely decolou quando foi para São Paulo não existe mais. Mais de 90% das cidades foram atingidas pela enchente. Andrei Nowa, que conseguiu voltar para Porto Alegre no começo desta semana, se diz desolado. “Não estava preparado para ver os lugares de infância, os lugares que a gente vai sempre, com água até o telhado”, diz.

No médio prazo, Mely quer apoiar a reconstrução dos pequenos negócios no estado. E espera que a ferramenta, agora parte do arsenal que a Defesa Civil sabe operar, passe a fazer parte também da triangulação do poder público com as pessoas atingidas, para induzir o diálogo sobre a renovação das cidades.

A expectativa de longo prazo é que a documentação apoie o desenvolvimento de pesquisas e projetos que ajudem na prevenção de novas catástrofes climáticas.

Carlos Viana, de Lajeado, passou a integrar a equipe do Salva RS! para trazer atualizações de serviços no aplicativo. As águas baixaram no vale do Taquari. “A impressão, quando se anda na rua, é de que houve uma guerra. A água levou asfalto, destruiu construções, tem bairros que não conseguimos reconhecer”, conta.

Nesse cenário, a capacidade que a tecnologia tem de guardar e conectar informações ganha ainda mais importância. Como explica Jean Paul Lopes, “em caso de apocalipse, só a informação salva”.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais