Benzedeiras: a tecnologia ancestral de ciência aberta sem wi-fi
Uma reflexão sobre inovação, memória e o saber negro como patrimônio tecnológico brasileiro

Quando falamos de inovação e tecnologias, tendemos a projetar um cenário futurista. Robôs e carros voadores são quase um imaginário obrigatório. Obcecados pelo próximo aplicativo, pela próxima inteligência artificial, pelo próximo dispositivo que promete revolucionar nossas vidas.
Mas o que você me diria se eu te contasse que uma das tecnologias mais sofisticadas do Brasil é milenar e funciona perfeitamente? E se ela estivesse ali, escondida nas mãos calejadas de mulheres negras que, há gerações, curam corpos e almas com apenas palavras, ervas e fé?
No coração do bairro paulistano do Bixiga, onde os prédios crescem como cogumelos depois da chuva e tentam apagar qualquer vestígio de um passado incômodo, Tia Eliza de Luca mantém viva uma tradição que é, ao mesmo tempo, resistência política e inovação tecnológica.
Existe um ponto cego na narrativa global sobre inovação: a incapacidade de reconhecer que nem toda tecnologia é digital. As "benzedeiras" operam dentro de um framework sofisticado de pensamento sistêmico, integrando corpo, território, saúde mental, bem-estar espiritual e coesão social em uma prática absolutamente robusta.
Esse conhecimento é resultado de séculos de desenvolvimento iterativo, testado, refinado e adaptado por gerações. A partir da lógica empresarial, trata-se de um modelo de inovação descentralizado, antifrágil e sustentável – baseado em recursos locais, escalável, de baixo custo e de altíssimo impacto social.
UM CÓDIGO FONTE DE CURA E RELAÇÕES MAIS HUMANAS
Para entender o trabalho das benzedeiras como tecnologia, te convido a expandir nossa definição do que é inovação. Se tecnologia é a aplicação de conhecimento científico para resolver problemas práticos, então o que fazem essas mulheres é pura tecnologia de ponta.
Elas dominam um sistema complexo que envolve:
- Conhecimento botânico (quais ervas usar para cada mal)
- Psicologia aplicada (como acolher e tranquilizar)
- Farmacologia natural (dosagens e combinações)
- Gestão de relacionamentos (mediação de conflitos familiares)
- Urbanismo social (como criar espaços de acolhimento comunitário).
Tia Eliza é um um algoritmo humano que combina intuição, experiência e conhecimento ancestral. E o melhor: os prompts não precisam de wi-fi. A interação humana basta como start.
Preservar a memória é muitas vezes visto como um exercício de preservação cultural. Mas, na prática, memória é infraestrutura. É armazenamento de dados em sua forma mais ancestral. É transferência de conhecimento em um modelo open-source, amplamente distribuído e resiliente.
Quantas soluções para os desafios complexos que enfrentamos hoje – da saúde mental às mudanças climáticas – já estão presentes nesses saberes ancestrais, mas seguem invisibilizadas?
O APAGAMENTO HISTÓRICO É A BORRACHA DO PROTAGONISMO DE CADA BRASILEIRO
Há alguns meses, a Mobilização Estação Saracura/ Vai-Vai tem defendido o direto à memória como um direito fundamental.

A região tem sido alvo da construção de um metrô que tem como espaço mais de 60 mil artefatos encontrados a partir de escavações, abrigando saberes milenares que certamente constituem a percepção antropológico-científica de muita gente ao redor do Brasil.
Cada capela que cai, cada benzedeira que se vai sem passar o conhecimento adiante, é um servidor que queima, uma biblioteca que pega fogo.
A INOVAÇÃO É UMA OUROBOROS: É A CICLICIDADE DE MOVIMENTO
Precisamos repensar nossa relação com a inovação. Não se trata de romantizar o passado, mas de reconhecer que algumas tecnologias ancestrais foram desenvolvidas para durar, para se adaptar, para evoluir de forma sustentável. Enquanto nossos aplicativos ficam obsoletos em dois anos, o conhecimento das benzedeiras atravessa séculos.
Tia Eliza, aos 64 anos, continua inovando. Ela adaptou sua prática às demandas contemporâneas – atende pessoas de todas as classes sociais, lida com problemas modernos como depressão e ansiedade, usa suas redes de contato para conseguir trabalho e moradia para quem precisa. Ela é uma startup social que opera há 26 anos com crescimento sustentado e impacto social mensurável.
Talvez a maior inovação que podemos fazer hoje seja criar pontes entre essas tecnologias ancestrais e os recursos contemporâneos. Documentar esse conhecimento, apoiar essas mulheres, reconhecer oficialmente seu trabalho como patrimônio tecnológico brasileiro.
Imagine só: e se criássemos um programa de residência em que desenvolvedores de tecnologia passassem temporadas com benzedeiras, aprendendo sobre gestão de comunidades e resolução de conflitos? A verdadeira inovação brasileira acontece a partir daí (!!).
COMO A TECNOLOGIA PODE CRIAR ACERVO À MEMÓRIA?
Parafraseando Emicida, "infeliz do povo que não sabe de onde veio". Mas mais infeliz ainda é o povo que não reconhece a inovação que já tem. Enquanto corremos atrás do futuro, nossas benzedeiras seguem lá, inovando no presente, preservando o passado, construindo pontes entre mundos.
Elas são nossas primeiras hackers, nossas primeiras designers de experiência, nossas primeiras especialistas em big data emocional. São a prova viva de que a inovação mais revolucionária, às vezes, é aquela que nunca esqueceu de onde veio e mantém seus pilares de missão, visão e valores intactos mediante à ação do tempo.
Enquanto seus conhecimentos resistem aos algoritmos do esquecimento, elas nos lembram que o futuro da tecnologia talvez não esteja somente nos laboratórios do Vale do Silício, mas nas mãos calejadas de mulheres que transformaram a dor em cura, a resistência em inovação, a memória em futuro – e em presente.
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