Black Friday: consumir ou não consumir, eis a questão

Crédito: Fast Company Brasil

Danilo Thomaz 6 minutos de leitura

No romance “Luxúria” (2016), do escritor Fernando Bonassi, o protagonista, um operário qualificado, decide comprar uma piscina para instalar no quintal de sua casa. Eram, ainda, os tempos da prosperidade brasileira. E o homem – assim chamado pelo narrador – compra uma piscina muito acima de suas possibilidades – o que o levará a um desenlace trágico.

O romance foi publicado ainda no início da crise brasileira. Passados cinco anos desde sua publicação, a situação só piorou. Desde então, mais de 14 milhões de brasileiros permanecem desempregados. A inflação, em 2021, vem batendo recordes seguidos e já rompeu a barreira psicológica dos dois dígitos (10%). O aumento de preços de alimentos que fazem parte da dieta cotidiana, como a carne vermelha, levou os brasileiros a buscarem ossos nos supermercados. Que também aumentaram de preço. O país que teve a estabilidade inflacionária simbolizada pelo preço do frango vê, agora, a população contar as notas por seus miúdos.

Apesar ou por causa desta conjuntura, já começam a proliferar pelas redes dicas, propagandas e produtos selecionados para a Black Friday 2021. Esta, para quem não sabe, é uma tradição do comércio dos Estados Unidos. Foi criada tanto para desovar os estoques antes do Natal quanto para movimentar o comércio no feriado de Ação de Graças.

No Brasil, a “moda” começou a pegar na década passada – já com o país em crise. Os casos de manipulações de promoções e os baixos descontos deram a ela o apelido de “Black Fraude” pelas redes sociais. Com o tempo, o varejo brasileiro foi se aprimorando à data, que entrou para o calendário do comércio nacional.

Porém, este será o ano mais complicado para a data desde que ela começou a ganhar corpo no Brasil. Diante de uma massa desempregada, com poder decrescente de consumo e dificuldades crescentes para acessar bens básicos, sobretudo os alimentícios, é momento para uma temporada de consumo e liquidação? É hora para esse tipo de estímulo? 

“Essa é realmente uma encruzilhada. Ao mesmo tempo em que a gente pode dizer não é sensato, a economia precisa rodar. Fica difícil dizer ‘não, não é hora’. Até porque vai acontecer. Como as pessoas vão se comportar frente a isso são outros quinhentos”, afirma Cássia D’Aquino, consultora internacional de educação financeira.

Segundo a educadora financeira, pioneira na matéria aqui no Brasil, se as pessoas fossem sensatas teriam uma poupança e tomariam apenas escolhas racionais em relação ao dinheiro. Mas nós não somos racionais em relação a ele – ao menos não o tempo todo. 

E uma circunstância como a brasileira, de acordo com D’Aquino, só favorece a insensatez e o consumo por impulso.

“Para que as pessoas se planejem em relação ao dinheiro é preciso que elas tenham confiança em relação ao futuro e uma economia que sustente isso. O fato de a gente vir da pandemia, desse desastre econômico que se arrasta desde 2014 leva as pessoas a um estado de exaustão enorme. [A pergunta que as pessoas se fazem é:] ‘para que organizar o futuro?’”

Nesse quadro, as crianças acabam também se beneficiando – ao menos num primeiro momento. “Eu percebi durante a pandemia que mesmo pais muito sensatos entregaram para Deus [os limites diante dos filhos]. Acho que não apenas em função da tristeza dos filhos mas da própria angústia. Você não suporta ver, para além do seu sofrimento, o seu sofrimento espelhado na sua cria”, conta. 

Assim, atender aos desejos imediatos dos filhos – por jogos, brinquedos, doces – acaba sendo uma maneira de compensar a si próprio nessa conjuntura. “Voltar a essa rédea depois da pandemia é que vão ser elas.”

NECESSIDADE VS PRESTÍGIO 

O professor do Departamento de Sociologia da Unicamp, Michel Nicolau Neto, pesquisador das práticas de consumo, define as mesmas em duas esferas. Aquela da necessidade, como a alimentação básica. E aquela ligada à aquisição de prestígio, que diferencia as pessoas de diferentes classes sociais ou mesmo dentro de uma mesma classe social. 

“As classes consomem a partir dessas duas perspectivas. Quando houve uma ascensão das classes populares, elas começaram a consumir coisas que permitiram que se diferenciassem em termos de prestígio. Elas passaram [por exemplo] a consumir roupas na Riachuelo, na C&A, que faziam parcerias com estilistas. Essas roupas ultrapassam a necessidade de se vestir. A mesma coisa em relação ao uso de serviços. As classes populares começaram a investir em cursos de línguas. Servia como diferenciador.”

Já num momento como o atual – de precarização, desemprego, perda da renda e desigualdade –, as classes mais baixas se veem diante de uma “escolha de Sofia” diante do que consumir. 

“A carne não é só uma satisfação de necessidade. [Você] Não [a consome] só porque a carne alimenta mais, mas porque representa uma diferenciação social. Poder comer carne faz com que essas pessoas possam se posicionar ante as pessoas próximas de maneira mais respeitosa.” Para manter esse “prestígio” entre os seus pares nessa conjuntura, afirma o sociólogo, “as classes populares” terão “que abrir mão de consumo necessário em nome de um consumo de prestígio.”

E nisso entra a Black Friday. “Quando você tem uma campanha como essa de ‘Black Friday’, ‘integradora’, essas pessoas que têm poucos recursos vão ter que sacrificar produtos de necessidade ou vão estar ainda mais distantes das condições de geração de prestígio.”

Nisso, segundo Neto, reside a estratégia da Black Friday. “Ela cria certa pressão social nessas pessoas. Uma das características da Black Friday é o endividamento. As lojas abrem financiamentos muito mais longos que os regulares. Essas classes mais baixas acabam entrando num endividamento ou abrindo mão de um recurso que seria usado para necessidades. Ela acaba forçando que as classes mais baixas entrem na esfera do consumo ou elas se distanciam ainda mais das pessoas que vão consumir.”

Para a educadora financeira Cassia D’Aquino, no entanto, a Black Friday tem menos impacto agora do que o cenário pós pandemia que começa a raiar com o avanço da vacinação e a queda do número de casos e internações.

“O consumo funciona como vetor de reafirmação social. Em um país com o gap de renda tão acentuado quanto é o Brasil, essa tentativa de construção de uma identidade social a partir do consumo é um tanto mais cruel. De toda maneira, até por ser uma constante, não percebo uma ênfase especial nessa tentativa de acessar prestígio social neste momento. Minha impressão é que a pós-pandemia joga um papel mais importante neste momento”, afirma. “Por estranho que possa parecer, comprar é (também) colocar o desejo em movimento. Pode não ser a ação mais prudente neste momento de contração econômica, mas quem quer saber de  (mais) prudência depois de quase dois anos de pandemia?”


SOBRE O AUTOR

Danilo Thomaz é jornalista colaborador da Fast Company Brasil. saiba mais