Bolívia entra em uma nova era com a extração de lítio. Mas a que custo?

A escalada da extração de minerais nos Andes bolivianos representa um iminente choque entre duas visões fundamentalmente diferentes da natureza

Crédito: Getty Images

Mario Orospe Hernández 4 minutos de leitura

Localizada no coração da América do Sul, a Bolívia abriga as maiores reservas de lítio do mundo – uma posição invejável, aos olhos de muitos países, com o crescimento do mercado de carros elétricos. As baterias desses veículos exigem mais minerais, especialmente o lítio, que também é usado em smartphones e computadores.

Mas, ao contrário de seus vizinhos Chile e Argentina, o país ainda não é um grande player no mercado global de lítio. Em parte, devido ao fato de que suas salinas de alta altitude não são adequadas para o método tradicional de extração por evaporação.

No entanto, ao que parece, isso está prestes a mudar. Em janeiro de 2023, a estatal YLB assinou um acordo com o consórcio chinês CBC, que inclui o maior produtor mundial de baterias de íons de lítio, para introduzir um novo método de extração direta.

Este pode ser o impulso econômico que o país precisa. Porém, desde os tempos coloniais, a riqueza mineral da Bolívia tem sido associada à poluição, pobreza e exploração.

Alguns moradores estão esperançosos quanto aos benefícios potenciais dessa crescente indústria, mas outros estão preocupados com o impacto que pode causar. A extração direta exige uma grande quantidade de água doce, o que pode colocar em risco os ecossistemas locais, como já aconteceu em outras partes do “triângulo do lítio” da América do Sul.

Os depósitos de lítio ficam abaixo da camada de sal (Crédito: Mario Orospe Hernández)

A rápida escalada da extração de minerais nos Andes bolivianos também representa um iminente choque entre duas visões fundamentalmente diferentes da natureza: a da sociedade industrial moderna e a das comunidades indígenas que habitam a região.

A PACHAMAMA

A Bolívia abriga 36 grupos étnicos. Os povos Aymara e Quechua compõem a maioria das comunidades indígenas nas montanhas dos Andes. Para essas culturas, a natureza não é um meio para fins econômicos, mas sim um grupo de seres com personalidade, história e poder além do alcance humano.

Eles cultuam a divindade feminina da fertilidade Pachamama. Como ela sustenta e assegura a reprodução da vida, os povos indígenas andinos fazem oferendas em rituais que buscam reforçar sua conexão com ela.

Também enxergam as formações rochosas não como um conjunto inerte, mas como guardiões ancestrais. Cada povo andino louva uma montanha próxima que acreditam proteger e vigiar suas vidas. Em Uyuni, por exemplo, onde será construída uma das duas novas usinas de lítio, eles reconhecem a presença desses seres sagrados.

Agricultores da vila de Chicani, nas imediações da capital, La Paz (Crédito: Mario Orospe Hernández)

No entanto, conceitos religiosos como “sagrado” ou “divino” não capturam necessariamente a relação que os povos indígenas andinos estabeleceram há muito tempo com esses seres sobre-humanos. Essas entidades não são consideradas “deuses” ou pensadas como lidando com crenças sobrenaturais. São tratadas como parte integrante da vida cotidiana e terrena das pessoas.

MATÉRIA SEM VIDA

Nas sociedades industriais, por outro lado, a natureza é entendida como algo externo à humanidade – um objeto que pode ser dominado através da ciência e da tecnologia. A economia moderna a transformou em uma fonte de matérias-primas, que estão lá para serem extraídas e usadas. Dentro deste pensamento, um mineral como o lítio é um recurso para gerar ganhos econômicos.

Esse conceito pode ser atribuído a uma noção teológica. Na visão cristã, adaptada da ideia original de Aristóteles, tudo está ordenado por seu nível de “perfeição”, do mais baixo – matéria-prima, a “coisa” mais básica do mundo – a plantas, animais, humanos, anjos e, por fim, Deus.

A igreja católica e o império espanhol posteriormente usaram essa compreensão medieval de matéria como algo passivo, sem espírito, para justificar a extração de recursos durante os tempos coloniais. Quanto mais próximas as coisas estivessem da matéria-prima, argumentava-se, mais precisavam da impressão humana e de um propósito externo para se tornarem valiosas.

Santuário de pedras da etnia quechua, na Ilha do Sol, no lago Titicaca (Crédito: Mario Orospe Hernández)

Essa visão serviu como base para o conceito moderno de matéria-prima, introduzido no século 18 com o surgimento da economia como ciência social.

O CAMINHO À FRENTE

Os projetos de extração de lítio na Bolívia apresentam um potencial conflito de visões de mundo. No entanto, nos últimos anos, essas iniciativas vêm enfrentando obstáculos, incluindo protestos, a crise política de 2019 e a falta de tecnologia necessária. O acordo com a China é, sem dúvida, um novo marco, mas seus resultados são incertos – para a economia, para as comunidades locais e para a Terra.

Hoje, os veículos elétricos são amplamente considerados como uma solução para a crise climática. No entanto, para atender às suas demandas, a mineração precisa ser feita em larga escala. Se as sociedades realmente desejam um futuro mais verde, serão necessárias outras mudanças, como um planejamento urbano mais sustentável e um melhor sistema de transporte público.

Mas, além disso, talvez outras culturas possam aprender com a relação dos povos andinos com a natureza – encontrar nela a inspiração para repensar o desenvolvimento e transformar nosso próprio modo de vida em algo menos destrutivo.

Este artigo foi republicado de The Conversation sob licença Creative Commons. Leia o artigo original.


SOBRE O(A) AUTOR(A)

Mario Orospe Hernández é doutorando em estudos religiosos na Arizona State University. saiba mais