Carne cultivada em laboratório só vai funcionar com uma porção vegetal
Problemas de produção, custo e formulação ainda estão atormentando as empresas que querem vender carne cultivada com células
Neste mês, o USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos) aprovou a rotulagem de um tipo de alimento que antes era chamado de “carne cultivada em laboratório”. A agência reguladora concedeu à Eat Just e à Upside Foods a aprovação do nome com o qual estas startups poderão rotular seu produto. O veredito: carne de cultivo celular.
Mas mais do que saber como esses produtos serão rotulados, agora também já é possível vislumbrar um pouco sobre o futuro da carne produzida com uso da tecnologia. Todos querem saber quando isso chegará ao mercado, se vai conseguir atender à larga demanda e se cumprirá a promessa de trazer benefícios na luta contra a crise climática.
Para além das perguntas sem fim, uma coisa parece certa: quando a carne cultivada chegar aos nossos pratos, ela virá misturada com ingredientes que não são de origem animal – basicamente, com plantas. Assim como a carne bovina, a carne do futuro dependerá de culturas básicas, como soja e legumes.
CARNE CULTIVADA DEPENDERÁ DAS PLANTAS
Em Cingapura, único país onde as empresas já podem vender legalmente carne cultivada aos clientes, o produto de frango da Eat Just é feito com aproximadamente 74% de células de frango e 26% de plantas.
“Nosso processo funciona, mas acrescentar aglutinantes é o que realmente torna o produto ideal”, diz o CEO, Josh Tetrick. “Se quiséssemos, daria para fazer com 100% de carne, mas a textura fica melhor com a mistura.”
Assim como a carne bovina, a carne do futuro dependerá de culturas básicas, como soja e legumes.
A Eat Just está usando vegetais para diminuir a carga de produção. As plantas oferecem mais funcionalidade do que as células animais – que parecem mais um mingau.
Mas será que o acréscimo de uma pequena porcentagem de plantas na carne cultivada será o suficiente para agradar veganos e vegetarianos? Provavelmente não.
Noventa e nove por cento dos veganos, sem dúvida, vão querer distância dessa novidade. Restam, então, os carnívoros e flexitarianos (ou semivegetarianos). Mas eles não mudarão seus hábitos até que o produto se torne bem mais barato e muito mais gostoso.
Essa abordagem híbrida vai além da adição de proteínas e óleos vegetais para melhorar o gosto. As plantas ajudam a completar o que falta nas células de carne cultivadas fora do corpo de um animal, permitindo que os fabricantes repliquem a “estrutura” que dá forma a alimentos como o salmão ou o bife.
“Usaremos aglutinantes à base de plantas quando o produto for lançado em restaurantes”, confirma Aryé Elfenbein, cofundador da Wildtype, que está cultivando salmão em laboratórios. Segundo ele, a maioria das empresas precisará contar com fábricas para “produtos estruturalmente complexos”.
As plantas também aliviam a pressão de produzir grandes quantidades de células cultivadas – o que nenhuma startup conseguiria fazer – para que possam chegar ao mercado mais rapidamente.
“Com a tecnologia atual, não há nenhum caminho para comercializar significativamente um produto que não seja hibridizado”, analisa Paul Shapiro, CEO da The Better Meat Co. e autor do livro "Clean Meat" (Comida Limpa, em tradução livre).
Além disso, as plantas são baratas. “Isso faz com que a empresa tenha custos competitivos”, acrescenta Lisa Feria, sócia-gerente e CEO da Stray Dog Capital, uma das primeiras investidoras em empresas especializadas em plantas e carnes cultivadas – incluindo a Beyond Meat, a Daring e a Upside.
“Essas vendas iniciais serão de produtos mistos. Ninguém consegue, ainda, produzir o suficiente e com a rapidez necessária para atender à demanda.” O objetivo final continua sendo oferecer carnes feitas 100% com células cultivadas", diz Feria. “Mas isso só vai acontecer depois de muito tempo de fabricação e inovação”.
CONQUISTAR PELO PALADAR
Que porcentagem de células cultivadas precisa ser adicionada para nos convencer de que estamos comendo carne e não vegetais? Mesmo com o FDA e o USDA dando o seu aval aos poucos, a indústria nascente continua em compasso de espera.
Tetrick, da Eat Just, reconhece que “às vezes, as pessoas acham que a aprovação regulatória significa que haverá produção em larga escala”, mas é mais honesto admitirmos que “mesmo se as agências do mundo aprovassem a venda de carne cultivada em todos os lugares, isso não nos permitiria vender um quilo a mais em 2023 ," ele diz. “A etapa mais limitante é a escala.”
O anúncio no início deste mês feito pela JBS – que está construindo uma instalação de carne cultivada na Espanha para a BioTech Foods, agora de sua propriedade – pode ser o maior sinal para o setor.
Quer apostar que a maior empresa de processamento de carne do mundo está pensando em como misturar carne cultivada em células com seu produto industrial tradicional para criar algo mais “carnudo” do que a carne que conhecemos?
No entanto, quando as portas se abrirem, ela poderá produzir apenas mil toneladas de carne bovina cultivada por ano. Ou seja: estará centenas de milhões de toneladas aquém do que será necessário no futuro.
melhorar a acessibilidade exigirá fábricas maiores, insumos mais baratos, mais células e custos mais baixos.
Outro player importante nessa indústria também está na fila para participar de um futuro de carne híbrida (embora, no momento, não seja com carne cultivada): trata-se da gigante da avicultura Perdue Farms. Em 2019, a empresa lançou o Chicken Plus, uma refeição congelada feita com carne de frango e um quarto de xícara de vegetais fornecidos pela The Better Meat Co.
O fato é que melhorar a acessibilidade exigirá fábricas maiores, insumos mais baratos, mais células e custos mais baixos.
Após uma década de esforços, a solução de recorrer a produtos híbridos pode parecer decepcionante no curto prazo, mas também permite que a indústria reduza sua arrogância.
Isso não vai acontecer da noite para o dia. Para alimentar o mundo, a carne cultivada com células ainda precisa de muito tempo e dinheiro. Muito mesmo.