Combate à pobreza é urgente, mas não podemos ter pressa
Urgência é diferente de pressa. Essa frase pode caber em muitas situações, mas trago aqui uma provocação: como ela se aplica a projetos de investimentos sociais que possibilitem que pessoas e comunidades subestimadas escapem da armadilha da pobreza de forma efetiva.
Sempre digo que dinheiro sozinho não resolve a pobreza. Se resolve extraindo a pobreza da cabeça das pessoas. E isso não é utopia, é uma realidade que vejo no meu dia a dia com o trabalho que realizamos em Santa Luzia do Itanhy, interior de Sergipe.
Chegamos nesta pequena cidade do sul do estado com o IPTI (Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação) em 2010, com a proposta de construir um modelo de superação do problema da perpetuação da pobreza que seja eficaz, escalável e sustentável.
Enfrentamos algumas barreiras no início. Porém, 12 anos depois, estamos colhendo resultados de impacto e gerando diversas tecnologias sociais para enfrentar os principais fatores que reforçam a armadilha da pobreza, numa estratégia de atuação sistêmica e evolutiva.
Tecnologias sociais são soluções para problemas sociais construídas de maneira participativa com a comunidade local, associando o conhecimento científico e tecnológico ao conhecimento das pessoas que vivenciam a questão. Entre seus diferenciais estão pontos como eficácia, escalabilidade, sustentabilidade e o pleno protagonismo das comunidades.
Tecnologias sociais são soluções para problemas sociais construídas de maneira participativa com a comunidade local.
O que mais ouço de grandes empresários, investidores e filantropos é quando os resultados vão começar a aparecer. Entendo que existe toda essa vontade, mas a clareza que tenho é que a maioria tem pressa. Vejo gente se unindo, magnatas doando fortunas para causas sociais, mas como essas ações realmente impactam a longo prazo a vida de uma comunidade, por exemplo, ainda tenho dúvidas.
Quando se chega em uma comunidade muito carente com projetos de melhoria social, a tendência natural é dar às pessoas o que elas estão precisando na urgência, o que necessitam prontamente em um curto prazo. Comida, emprego ou capacitação para um pseudoemprego são as estratégias mais comuns entre empresas e apoiadores que querem ajudar.
Preoponho promover uma mudança de mentalidade, tanto das pessoas que precisam de ajuda quanto daqueles que desejam ajudar. As três reflexões a seguir ajudam a entender melhor como os investimentos sociais podem gerar transformação e trazer soluções complexas para problemas complexos, como diz o ditado.
POBREZA NÃO TEM UMBIGO
A pobreza é um problema global. Desta forma, investir em projetos que só contemplem o entorno das fábricas ou das unidades onde uma empresa atua, por exemplo, não é suficiente. Se eu não educar e trabalhar bem uma criança na Amazônia porque minha fábrica fica em São Paulo, essa criança pode, em algum momento, migrar para São Paulo por falta de oportunidade.
fazer a reaplicação de modelos respeitando as dinâmicas de cada lugar dá muito trabalho, mas é possível.
Temos que focar em formação de capital humano, numa perspectiva de longo prazo. E não apenas em termos de capacitação intelectual. Falo de formar seres humanos que queiram ser mais humanos. Pessoas das comunidades subestimadas, que já têm as dificuldades inerentes da pobreza material, precisam lutar para sobreviver e acabam tendo um olhar extremamente individual.
Essa construção paulatina necessita de muita empatia e de um modelo que viabilize a seleção de pessoas com potencial mais evidente, os talentos locais. É fundamental trabalhar no tempo delas para que, de fato, se tornem empreendedoras sociais nas suas respectivas causas. É preciso olhar os processos para não atropelar a formação de capital humano. Somente isso vai permitir escalabilidade com eficácia, que é um grande desafio.
Desenvolver projetos e ações em escala é fácil; sair multiplicando por aí é fácil. Agora, fazer escala com eficácia, fazer a reaplicação de modelos respeitando as dinâmicas de cada lugar dá muito trabalho, mas é possível.
INVESTIMENTO SOCIAL E PROTAGONISMO DA COMUNIDADE
Gosto de comparar o investimento social com o financeiro, para fugirmos do conceito tradicional de filantropia ou de doação.
Quando se faz investimento social, a expectativa é que você obtenha resultados, como em um investimento financeiro. Nesta segunda opção, você não faz para ajudar um banco ou um negócio, e sim porque busca retorno financeiro positivo, mesmo que a longo prazo. Essa é a dinâmica do mercado.
No social, o investimento é eficaz se gerar transformação real. Isso só acontece quando a comunidade se torna protagonista da mudança. Ela precisa ser preparada desde a base, para que as desigualdades sociais não sejam perpetuadas.
Para se ter uma ideia do impacto que a pobreza é capaz de causar na jornada de uma pessoa vulnerável desde a primeira infância, uma pesquisa da recente da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), publicada na revista "The Lancet", mostrou que a pobreza na infância traz efeitos negativos no desenvolvimento das crianças, com mais riscos de mortalidade infantil, desnutrição crônica, baixa escolaridade, gravidez na adolescência, e, no futuro, queda no desenvolvimento intelectual.
No social, o investimento é eficaz se gerar transformação real. Isso só acontece quando a comunidade se torna protagonista da mudança.
O estudo mostrou também que as crianças mais pobres têm risco duas a três vezes maior de morrer até os cinco anos de idade, ter baixa estatura e atraso do desenvolvimento cognitivo para a idade e não completar o ensino fundamental.
Como fazer uma criança nessa situação sair de uma condição de vulnerabilidade para alçar desafios na vida adulta? Se não houver mudança do cenário por meio de investimentos em educação, arte, ciência e tecnologia, ficará difícil romper o ciclo e fazer com que essa pessoa contribua com o crescimento e protagonismo de sua comunidade.
Proporcionar modelos que impulsionem as pessoas que vivem os problemas a protagonizar as evoluções necessárias é um caminho mais longo e tortuoso do que o do assistencialismo na veia. Porém, é capaz de mudar uma realidade de pobreza, dar exemplos importantes de superação e uma compreensão mais ampla da urgência em resolver a questão.
A comunidade ser protagonista da mudança é um elemento essencial, pois não se muda o mundo sem formar capital humano capaz de expandir e multiplicar conhecimentos com propriedade, segurança e visão de futuro.
Ao selecionar pessoas com grande potencial e dar condições para que executem muito bem a solução daquele problema, trazemos um elemento importante para o sucesso do investimento social. É preciso ter conhecimento profundo para exercer bem a missão.
RESULTADOS PEDEM TEMPO
O aumento do volume de investimento social é um dado importante, mas volto a dizer: correr não é uma boa ideia se você pretende ver transformações reais. De acordo com Gife (Grupo de Institutos e Fundações de Empresas), a pandemia alavancou em 71% o investimento social do setor privado, que atingiu R$ 5,3 bilhões em 2020.
Ao ter que prestar contas à sociedade, as empresas buscam onde e como investir de forma efetiva.
Claramente, as boas práticas ambientais, sociais e de governança, o famoso ESG, batem à porta das corporações. Estas, ao ter que prestar contas à sociedade, aos investidores, conselhos e consumidores, buscam onde e como investir de forma efetiva. Porém, para que o dinheiro seja aplicado em mudanças significativas e que não embelezem apenas os relatórios da empresa, é preciso dar tempo ao tempo.
Trago um exemplo de uma das tecnologias sociais mais importantes do IPTI, o Synapse, cujo objetivo é melhorar a qualidade da alfabetização de escolas públicas. O Synapse já foi reaplicado em escolas de 27 municípios em quatro estados, envolvendo mais de mil professores e beneficiando mais de 20 mil alunos. As professoras do Synapse hoje comandam uma campanha nacional por uma alfabetização de qualidade para todas as crianças.
Mas, para chegarmos a esses números, trabalhamos por seis anos com apenas seis professoras de Santa Luzia do Itanhy na construção de uma solução adequada à realidade local.
Esses anos de desenvolvimento foram extremamente importantes, pois chegamos a uma versão eficaz dentro de um contexto de extrema pobreza e exclusão. O tempo nos mostrou que, para formar empreendedoras sociais, não é possível atropelar os momentos.
Respeitamos o tempo, o processo e a dimensão do problema na região até conseguir um grau de eficácia aceitável, que de fato pudesse melhorar a qualidade da alfabetização nas escolas e possibilitar que as professoras fossem para outro município inspirar outras colegas, porque elas se reconhecem, se identificam e se inspiram.
Inspiração é esperança e, para mim, a esperança é a principal energia de transformação do mundo.