Como a indústria da água engarrafada agrava a falta de água para todos

Além de oferecer um produto menos confiável e acessível, a indústria de desvia a atenção dos projetos públicos de distribuição de água potável

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Zeineb Bouhlel e Vladimir Smakhtin 5 minutos de leitura

A água mineral vendida em garrafinhas de plástico é uma das bebidas mais populares do mundo e sua indústria está lucrando o máximo que consegue.

Desde a virada do milênio, o mundo tem avançado significativamente em direção à meta de garantir oferta de água segura para todos. Em 2020, 74% da humanidade passou a ter acesso à água potável.

Isso significa que, em duas décadas, houve um aumento de 10%. Mas esse número ainda é insuficiente, pois dois bilhões de pessoas continuam sem acesso à água potável.

O risco é que o setor prejudique o progresso de projetos públicos de água potável, principalmente em países de baixa e média renda.

Enquanto isso, as empresas de água mineral exploram águas de superfície e aquíferos – normalmente a um custo muito baixo – e vendem por um valor de 150 a mil vezes maior do que o custo da mesma quantidade de água encanada distribuída pelo sistema público.

O preço alto é, muitas vezes, justificado pela oferta do produto como uma alternativa segura à água da torneira. Mas a água engarrafada não está imune a todas as contaminações. Afinal, ela raramente está sujeita aos rigorosos regulamentos ambientais e de saúde pública pelos quais a água da torneira passa nos países onde é liberada para consumo humano.

Em nosso estudo publicado recentemente, avaliamos 109 países. A conclusão alarmante foi que a indústria de água engarrafada, altamente lucrativa e em rápido crescimento, está prejudicando os esforços dos sistemas públicos de fornecer gratuitamente água potável para todos.

O risco é que o setor prejudique o progresso de projetos públicos de água potável, principalmente em países de baixa e média renda, desviando os esforços de desenvolvimento e redirecionando a atenção para uma opção menos confiável e menos acessível.

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A crescente indústria de água engarrafada também afeta de diversas maneiras os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.

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O último relatório da UN University (Universidade das Nações Unidas) revelou que as vendas anuais do mercado global de água engarrafada devem dobrar nesta década, chegando a US$ 500 bilhões. Isso pode aumentar a crise em áreas com escassez de água, contribuindo, ao mesmo tempo, para a poluição por plástico na terra e no mar.

Crescendo mais rápido do que qualquer outro na categoria de alimentos, o mercado de água engarrafada é maior no hemisfério sul. As regiões da Ásia-Pacífico, África, América Latina e Caribe respondem por 60% das vendas.

Mas nenhuma região está no rumo certo para alcançar o acesso universal a serviços de água potável, que é uma das metas do ODS para 2030. Ou seja, o maior impacto dessa indústria parece ser seu potencial para impedir o progresso das nações em suas metas de fornecer acesso equitativo à água potável a preços acessíveis.

IMPACTO NAS NAÇÕES MAIS VULNERÁVEIS

No hemisfério norte, a água engarrafada costuma ser considerada mais saudável e saborosa do que a da torneira. Ela é vista, portanto, mais como um bem de luxo do que como propriamente uma necessidade.

Já no hemisfério sul, o que impulsiona esse mercado é a falta ou ausência de abastecimento público confiável de água e infraestrutura de gerenciamento de água.

nenhuma região está no rumo certo para alcançar o acesso universal a serviços de água potável, que é uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030.

Portanto, em muitos países de baixa e média renda, particularmente na Ásia-Pacífico, o aumento do consumo de água engarrafada pode ser visto como um indicador da compensação por décadas de falha dos governos em cumprir o compromisso de construir sistemas públicos de água seguros.

Isso aumenta ainda mais a disparidade global entre os bilhões de pessoas que não têm acesso a serviços confiáveis de água e as outras que desfrutam da água mineral como um item de luxo.

Em 2016, o financiamento anual necessário para alcançar um abastecimento seguro de água potável em todo o mundo foi estimado em US$ 114 bilhões. Esse valor representa menos da metade dos atuais cerca de US$ 270 bilhões em vendas de água engarrafada.

REGULAMENTANDO A INDÚSTRIA

No ano passado, a Organização Mundial da Saúde estimou que a atual taxa de progresso precisa quadruplicar para que a meta dos ODS para 2030 seja atingida. Um desafio gigantesco, principalmente se considerarmos que existem prioridades financeiras conflitantes e que os interesses do mercado são sempre prevalecentes no setor de água.

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Conforme o mercado de água engarrafada cresce, torna-se mais importante do que nunca fortalecer as normas que regulam o setor e seus padrões de qualidade.

A legislação pode agir, por exemplo, sobre o controle de qualidade da água engarrafada, a exploração de águas subterrâneas, o uso da terra, o gerenciamento de resíduos plásticos, as emissões de carbono, as finanças e as obrigações de transparência dessas empresas.

Nosso relatório defende a seguinte posição: o progresso global em direção às metas de infraestrutura pública de água tem sido menor do que o esperado. Para piorar, o mercado de água mineral funciona essencialmente contra esse progresso – ou pelo menos o retarda, afetando negativamente os investimentos a longo prazo no acesso universal à água limpa.

Algumas iniciativas de alto nível, como uma aliança de Investidores Globais para o Desenvolvimento Sustentável, visam aumentar o financiamento para os ODS, incluindo aqueles relacionados à água.

Tais iniciativas oferecem ao setor de água engarrafada uma oportunidade de se tornar um ator ativo nesse processo e ajudam a acelerar o progresso rumo ao abastecimento confiável de água, principalmente no hemisfério sul.

Este artigo foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.


SOBRE O(A) AUTOR(A)

Zeineb Bouhlel é pesquisador associado do Instituto de Água, Meio Ambiente e Saúde da Universidade das Nações Unidas e Vladimir Smakht... saiba mais