Como Gerando Falcões e Accenture querem mandar a pobreza para o espaço
A cena é emblemática. Um coral de crianças da escola municipal Professora Nurimar Martins Hiar, em Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo, canta “Anunciação”, de Alceu Valença, em um salão. Enquanto os pequenos estudantes entoam o refrão (“tu vens, tu vens”), outros garotos, nos fundos do mesmo lugar, estão ocupados em superar as fases de um game que acaba de ser lançado e que se projeta como um plano ambicioso da ONG Gerando Falcões e da Accenture, empresa global que desde 2016 apoia a entidade.
Com “Missão Favela X”, jogo disponível na plataforma Roblox, o sonho é fazer com que pessoas e empresas conheçam mais dos desafios da população que mora em favelas e ajudem a combater a pobreza. O que se anuncia, enfim, é uma proposta no metaverso para mudar vidas. É abrir fronteiras em um metaverso social, expressão usada por Edu Lyra, CEO da Gerando Falcões.
O game, em sua dinâmica, é simples: um foguete repousa em um campinho de futebol localizado em uma comunidade. Os jogadores têm de entrar na aeronave e superar seis níveis, passando por diferentes andares e desafios, para chegarem à sala de controle. De lá, ganham o espaço.
É preciso ressaltar que o campinho de terra se parece com qualquer um visto em muitas comunidades do Brasil. O cenário da favela está lá, mas em seu entorno há uma diferença importante: marcas têm seus logos estampados em placas, como acontece nas transmissões de futebol nas TVs do mundo todo. São empresas que se juntaram à ONG e a Accenture, a parceira tecnológica do projeto, para impulsionar o game e sua principal missão: mandar a pobreza para o espaço.
A meta surgiu em meio ao burburinho provocado pela nova corrida espacial, a dos bilionários. O projeto começou a ser discutido em setembro do ano passado. No dia 15, Elon Musk, dono da SpaceX – e da Tesla e agora do Twitter –, tinha celebrado o sucesso da primeira viagem apenas com civis ao espaço. Antes, em 20 de julho, Jeff Bezos, o fundador da Amazon, havia se aventurado em um voo suborbital em um foguete de sua companhia espacial, a Blue Origin. E nove dias antes, Richard Branson tinha inaugurado sua viagem espacial turística a bordo de uma nave de sua empresa, a Virgin Galactic. Foi o primeiro dos bilionários a, simbolicamente, fincar sua bandeira “perto das estrelas”.
É lógico que as viagens espaciais para civis só poderão ser custeadas por quem tem muito dinheiro. No início do ano, Musk fez projeções de quanto sairia um voo para Marte – o que seria possível dentro de dez anos, pelos cálculos do magnata: menos de US$ 10 milhões. O preço individual do bilhete? Talvez US$ 500 mil, talvez US$ 100 mil, um valor que Musk considera que qualquer um pode conseguir para bancar sua viagem se trabalhar e economizar, como declarou em entrevista para Chris Anderson, head do TED.
Especulações dessa natureza fizeram com que Edu Lyra pensasse: por que gastar tanto dinheiro para ir ao espaço se esses volumes gigantescos de dólares ajudariam a acabar com a pobreza? Essa ideia mexeu tanto com o fundador da Gerando Falcões que, no SXSW deste ano, em março, ele subiu ao lado de Eco Moliterno, chief creative officer (CCO) da Accenture Song, e lançou um desafio para Musk: que o ajudasse a transformar as favelas do Brasil. De preferência, antes que o homem chegue à Marte.
O objetivo do painel no festival foi mostrar como a tecnologia faz parte dos projetos de transformação social da ONG. No SXSW, foi apresentado um teaser do game, mas o lançamento mesmo foi reservado para as crianças da escola Professora Nurimar Martins Hiar e para as marcas que se juntaram ao projeto: 99, Havaianas e Nestlé.
EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E RECURSOS
“Missão Favela X” tem o propósito de educar e conscientizar, como foi antecipado pela Fast Company Brasil. “É uma oportunidade de interagir com uma comunidade imensa”, afirma Lyra. De fato. Numa conferência em fevereiro, o Roblox informou que o número de usuários diários atingiu 54,7 milhões no mundo.
Os principais desafios das favelas estão representados nos níveis do game: infraestrutura, saneamento básico, conhecimento, cultura e tecnologia. Essas etapas trazem informações e pretendem deixar claro, tanto para os jovens das comunidades quanto para o usuário médio de games – normalmente de famílias com mais rendimento –, a realidade das favelas brasileiras, que são perto de 14 mil.
“Gerar conscientização em públicos diferentes pode ter efeito para que se criem soluções”, afirma Leonardo Framil, CEO da Accenture para o Brasil e para a América Latina. Para ele, entrar no metaverso – que é representado pelo Roblox – é importante. “Essa é uma tendência tecnológica que vai mudar o mundo. Um dos modelos da Nike mais caros que existem está no virtual. A gente tem de estar no metaverso para captar recursos”, argumenta, acenando para o desenvolvimento de itens que podem virar recursos para a ONG.
Mas não é só isso, reforça. “Estamos entrando no futuro e o debate sobre a favela tem de estar no futuro. Estar no universo virtual é uma oportunidade de comunicação”, acredita.
PROJETO EM CONSTRUÇÃO
Cada passo dado no sentido de melhorar a vida de quem mora nas comunidades espalhadas pelo Brasil é comemorado. No lançamento do jogo, Lyra comentou que já foram arrecadados US$ 500 mil. O montante veio dos parceiros do projeto, porém, a expectativa é atrair mais empresas para participarem da missão.
Isso porque, como explica Moliterno, o projeto não se encerra no lançamento. Ele permite que novos parceiros sejam incorporados. “Estamos construindo pontes e inaugurando uma forma de incentivar outras marcas a se unir a uma proposta social”, diz, salientando que “Missão Favela X” é a primeira experiência imersiva de uma ONG brasileira.
Entre os que já estão no game, Havaianas “espalhou” pelo ambiente do jogo cartazes com as artes da coleção “Quebrada Cria”, uma parceria com a Gerando Falcões lançada em março. A entidade ajudou a selecionar artistas de comunidades que fizeram estampas para as sandálias. “Isso é só o começo”, conta Mari Rhormens, diretora de marketing. Uma das ideias é criar skins da marca, já presente no "Fortnite", onde Havaianas lançou uma ilha.
A 99, que apoia a ONG desde 2018, explora, além do campinho, o ambiente da cabine de controle. É possível se tornar um “astronauta parceiro” da companhia. Um plano é ter um grafite no game mostrando uma mulher motorista dentre as que são parceiras da 99. Juliana Biasi, diretora de marketing da empresa, observa que a tecnologia é uma aliada da companhia. Fazia sentido, portanto, estar no metaverso, principalmente por meio do Favela X. “A gente quer pensar junto em trazer soluções para o futuro”.
A Nestlé, que em fevereiro lançou barrinhas de cereais com a ONG, um produto social (ou seja, com 100% do lucro revertido para os projetos da Gerando Falcões), ainda estuda o que pode desenvolver no jogo, porém antecipa que, em breve, o “Missão Favela X” terá algumas funcionalidades “sintonizadas com os propósitos defendidos pela Nestlé”. É o que revela Dênis Chamas, gerente de inovação e novos negócios da companhia no Brasil.
Ele lembra que a Nestlé tem investido em “iniciativas inovadoras de impacto social”, como as que têm realizado com a Gerando Falcões, desde 2018. “Somos um dos patrocinadores do ‘Missão Favela X’ porque acreditamos que o universo gamer tem um imenso potencial de educação e de transformação social”.
A aposta no mundo gamer pela Nestlé já começou há alguns anos. Chamas dá como exemplo o patrocínio de KitKat ao CBLOL, “um dos campeonatos de esports mais disputados e animados do Brasil”. No ano passado, a marca lançou sabores inspirados em elementos de League of Legends.
Desafios no desenvolvimento do game
A escolha do Roblox para receber o projeto se baseou em uma razão poderosa: o game precisava ser acessado pelo celular e a plataforma é um sucesso mobile. Para desenvolver o “Missão Favela X”, a Accenture Song colocou um time de 20 pessoas trabalhando desde o início do ano. Para o diretor de criação Werner Pöckel, um dos desafios enfrentados por sua equipe foi o game design. Era preciso estabelecer uma estratégia que conduzisse bem o jogador pelo ambiente.
Também tiveram cuidado em elaborar easter eggs. Afinal, é fundamental levar o jogador a explorar o máximo que puder do game. Os patrocínios foram aproveitados para criar esses elementos, como as artes de Havaianas e as naves da 99. “Você pode chegar perto e ver quem são os artistas”, conta.
Como a intenção é manter a plataforma viva, Pöckel aposta em skins, mais easter eggs e até mesmo lojas, tudo desenhado com a ajuda de novas marcas que se juntarem ao projeto. “Podemos pensar em muitas coisas para o futuro”, entusiasma-se. “O game é uma porta de entrada.”