Cooperativismo de plataforma floresce durante a pandemia

Crédito: Fast Company Brasil

Kristin Toussaint 6 minutos de leitura

Todas as manhãs, na cidade italiana de Bolonha, entregadores de bicicleta transportam pães quentinhos das padarias locais até as empresas da região. Essa mesma rede de entregas oferece os serviços de levar os livros das bibliotecas da cidade e os alimentos das mercearias até as casas dos moradores. Ao contrário do que geralmente acontece em outras plataformas de entrega, as empresas não precisam pagar uma comissão para serem contempladas por esse serviço de entrega de pães. Quanto aos entregadores, eles ganham cerca de 9 euros (o equivalente a US$ 10,19) por hora, depois de descontados os impostos – uma boa diferença em relação ao tradicional salário bruto por hora de 5,5 euros (US$ 6,23) que os trabalhadores costumam receber de outros aplicativos, como o Deliveroo ou o UberEats. Além disso, quem trabalha na cooperativa conta com seguro para acidentes e doenças.

Esse tipo de arranjo nem sempre existiu. Ele surgiu como uma resposta às críticas sobre a precarização do trabalho dos entregadores, que aumentaram durante a pandemia de Covid-19. No caso de Bolonha, o setor administrativo responsável pelo desenvolvimento econômico da cidade reuniu os residentes – lojistas, estudantes, planejadores urbanos, um sindicato de entregadores de comida e o sistema de biblioteca local – e os entrevistou sobre quais eram suas necessidades durante a pandemia e sobre como um serviço de entregas poderia atender às suas demandas. A partir das respostas coletadas, a cidade ajudou a criar uma plataforma cooperativa – uma versão virtual de uma cooperativa, na qual os trabalhadores também são coproprietários de uma empresa que usa um site, um aplicativo ou algum outro tipo de plataforma online para vender seus serviços.

Batizada de Consegne Etiche (“Entregas éticas”, em português), a plataforma criada na cidade italiana não é apenas um serviço de entrega. É uma forma de aprofundar o “tecido social” da comunidade. Houve até mesmo entregadores que passaram tempo com idosos que ficaram sozinhos durante a pandemia, conta Trebor Scholz, diretor fundador do Instituto para a Economia Digital Cooperativa da The New School e coautor de um artigo recente sobre políticas de propriedade cooperativa, publicado pelo Instituto Berggruen.

A Consegne Etiche é apenas uma das muitas cooperativas de plataforma que se formaram nos últimos anos, mas “é um exemplo realmente interessante”, destaca Scholz, “porque evidencia o tanto que a administração de uma cidade pode realizar”. Ao reunir todas essas pessoas, a cidade ajudou a criar “soluções sinérgicas” para beneficiar tanto empresas quanto residentes.

A princípio, a promessa da gig economy (conceito que, em português, vem sendo chamado também de “economia gig” ou “economia freelancer”) era que os trabalhadores poderiam se libertar da rotina de trabalhar das 9h às 17h, e que poderiam estabelecer seus próprios horários, ganhando dinheiro à medida que seguissem suas paixões. A realidade, no entanto, se mostrou bem distante desse ideal. Os serviços prestados por aplicativos rapidamente se tornaram empregos de tempo integral para muitas pessoas. Só que trabalhando por conta própria ou por contratos (e não como funcionários), essas pessoas não recebem benefícios trabalhistas. O lobby de muitas empresas que criam plataformas de serviços tem sido no sentido de minar as proteções aos trabalhadores, como o direito de sindicalização. Em vez de “compartilhar” do sucesso desses novos negócios digitais, os trabalhadores e produtores de conteúdo ficam com apenas uma pequena fatia do bolo.

Mas as cooperativas de plataforma, diz Scholz – e os legisladores locais – podem ajudar a promover uma mudança. “Qual é a esperança, por exemplo, para os trabalhadores da cultura que são mal pagos e explorados?” Scholz diz. “As cidades, de certa forma. As cidades podem ter a chance de intervir e de realmente fazer as coisas, de [criar] políticas que possam ser sentidas na vida das pessoas.”

Scholz apresentou pela primeira vez o conceito de “cooperativismo de plataforma” em um artigo de 2014, no qual ele sugere ser possível e desejável trazer os princípios do cooperativismo para a economia digital. “As cooperativas de propriedade dos trabalhadores poderiam projetar suas próprias plataformas baseadas em aplicativos, promovendo formas verdadeiramente compartilhadas de fornecer serviços e coisas”, escreveu ele. Em uma cooperativa, os trabalhadores ou membros são também donos da empresa, e a empresa é democraticamente controlada por todos os membros-proprietários, e não por uma única pessoa no topo. Cooperativas de plataforma são cooperativas de propriedade de trabalhadores, que usam um site, um aplicativo ou algum outro tipo de plataforma online para vender seus produtos e serviços. Scholz dirige atualmente a Platform Cooperative Consortium, uma aliança de universidades e organizações cooperativas. Conforme a ideia de cooperativas de plataforma foi se espalhando, esse consórcio de Scholz foi abordado por conselhos municipais em todo o mundo, interessados no que ele pode fazer. Em seu documento mais recente, ele apresenta maneiras pelas quais os governos, de municipal a nacional, podem capacitar cooperativas de plataforma por meio de políticas.

As cidades, em particular, estão em uma posição estratégica para ajudar. Elas podem convocar grupos de pessoas para ensinar como uma plataforma cooperativa pode ajudar os residentes. Elas também podem oferecer programas de empréstimos solidários para financiar cooperativas iniciais, criar incubadoras de cooperativas, fornecer benefícios fiscais e expandir a legislação para melhor apoiar as cooperativas, em vez de empresas privadas.

Alguns lugares já estão praticando variações dessa ideia: a cidade de Barcelona, por exemplo, financia incubadoras que ajudam cooperativas de plataforma. Já o Reino Unido é o primeiro país a ter em seu governo um “Partido Cooperativo”, com 26 membros no Parlamento trabalhando para promover a propriedade democrática de serviços e utilidades. Na Califórnia, a atual proposta de legislação estadual, a chamada California Cooperative Economy Act, estipula que os trabalhadores se agrupem em uma cooperativa que “forneceria serviços de recrutamento para economia gig”. Esses trabalhadores seriam funcionários da cooperativa.

Vale lembrar que, tendo uma história de quase 200 anos, as cooperativas não são exatamente uma novidade. Há um debate entre especialistas sobre qual teria sido a primeira de todas elas, mas um relatório afirma que foi uma seguradora mútua contra incêndios fundada em 1752 por Benjamin Franklin. Cooperativas tampouco são algo raro. Nos Estados Unidos, elas possuem e administram 42% das linhas de eletricidade, a primeira das quais foi organizada em 1937. “Com as oportunidades da Internet, você pode redimensionar aqueles velhos princípios, e eles podem realmente ajudar as pessoas e diversificar a economia”, aposta Scholz— particularmente a economia digital, que “realmente precisa de mais diversidade, e não apenas desse modelo que domina tudo”. 

As cooperativas de plataforma podem ser versáteis e fazer parte de muitos setores. Na cidade de Nova York, a Co-o Ride é uma empresa de compartilhamento de viagens (caronas) que pertence aos trabalhadores. Nela, os motoristas também possuem uma parte da empresa. Na Califórnia, a NursesCan é uma cooperativa de enfermeiras vocacionais licenciadas que prestam cuidados sob demanda. Com sede na Bélgica, mas presente em nove países europeus, a Smart.coop transforma qualquer contratante independente – artistas, dançarinos, músicos – em funcionários que recebem benefícios e fundos de pensão. Para ingressar, os membros precisam comprar pelo menos uma ação da cooperativa, que leva uma pequena porcentagem dos pagamentos do cliente como uma taxa.

A pandemia ajudou a aumentar a popularidade das cooperativas, motivando as pessoas a começar a construir essa economia. A pandemia também estimulou um aumento no apoio sindical e uma maior participação na ajuda mútua. Mas agora, os formuladores de políticas devem intervir para incentiva-las ainda mais. “Este é um movimento internacional”, avalia Scholz. Algumas cooperativas ainda são pequenas; outras tornaram-se muito grandes (a Smart Cooperative, por exemplo, já fatura US $ 200 milhões por ano). Ainda assim, ele diz: “Sem o apoio da política, essa solução não vai atingir todo o seu potencial. E eu acho que estamos diante de uma boa oportunidade para as cidades mostrarem seus valores e como elas apoiam as comunidades neste momento difícil.”


SOBRE A AUTORA

Kristin Toussaint é editora assistente da editoria de Impacto da Fast Company. saiba mais