COP30 e a distância entre o clima das metas e a governança das práticas

Quando a ONU precisa cobrar condições básicas de segurança e acessibilidade, fica evidente que a inclusão acontece na credencial, não na governança

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Ana Bavon 4 minutos de leitura

A COP30 começou revelando, logo nas primeiras movimentações, uma tensão estrutural que há anos acompanha a agenda climática global: a distância crescente entre o clima das metas e a governança das práticas. Belém, com sua densidade histórica, territorial e simbólica,  apenas amplifica o que o mundo insiste em não ver.

Cheguei à conferência com um sentimento genuíno de animação. A diversidade de rostos, línguas e experiências nos corredores dava a impressão de que o mundo inteiro tinha se encontrado na Amazônia.

Havia algo profundamente bonito naquela possibilidade de troca entre pessoas de todos os continentes, um encontro que parecia anunciar um futuro mais plural e mais escutado. Mas, conforme a conferência avançava, essa animação foi sendo substituída por um pesar difícil de ignorar.

À medida que os espaços se organizavam, que as mesas eram compostas e que os acessos eram liberados ou negados, a paisagem multicultural da entrada não se reproduzia nos lugares onde as decisões reais acontecem. As hierarquias permaneciam exatamente as mesmas. O topo para o topo. A pluralidade seguia na plateia; a familiaridade seguia no palco.

Essa percepção ganhou contornos ainda mais nítidos com a carta enviada pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) ao governo brasileiro, solicitando medidas imediatas. Em um dos trechos, o texto afirma:

“It is urgent for the host country to provide immediate measures to ensure safety, accessibility and adequate conditions for all participants.” (É urgente que o país anfitrião tome medidas imediatas para garantir a segurança, a acessibilidade e as condições adequadas para todos os participantes.)

É raro ver a ONU usar esse tom. E, justamente por ser raro, ele revela que o problema não é pontual, é estrutural. Não se trata apenas de segurança ou logística: trata-se da incapacidade do próprio sistema de garantir igualdade de participação na arena que decide o futuro climático do planeta.

A carta expõe três contradições centrais que já se evidenciam desde o início:

1. Metas robustas, mecanismos frágeis

A COP30 opera com metas cada vez mais ambiciosas, sobre carbono, desmatamento, financiamento climático e transição energética. Mas essas metas não encontram equivalência em estruturas de implementação.

O discurso avança; os mecanismos permanecem difusos, insuficientes ou inexistentes. Não há transição possível quando plano e prática se movem em velocidades tão diferentes.

2. Inclusão formal não se traduz em participação real

O recorde de participação indígena e de comunidades tradicionais é frequentemente anunciado como triunfo. Mas só uma fração tem acesso às salas onde se decide.

Quando a ONU precisa cobrar condições básicas de segurança e acessibilidade, fica evidente que a inclusão acontece na credencial, não na governança. Participar não é influenciar. Estar presente não significa ser considerado.

3. A escuta como protocolo, não como princípio de governança

Fala-se muito em “transição justa”, mas a escuta que deveria sustentá-la segue superficial.

As decisões continuam sendo produzidas a partir de perspectivas centrais, técnicas, economicistas, e não a partir dos territórios, que carregam a materialidade da crise climática.

Escutar não é cumprir uma agenda de stakeholders. Escutar é deslocar poder e isso segue sendo evitado.

KRENAK JÁ NOS ALERTAVA SOBRE ESSA INCOERÊNCIA

Ailton Krenak sempre afirmou que “o futuro não é uma abstração; é uma consequência das escolhas que fazemos agora.” E sua análise sobre conferências como a COP é radicalmente precisa:

“Enquanto insistirmos em tratar a Terra como um recurso e não como uma relação, qualquer meta climática será incoerente na origem.”

Krenak aponta exatamente para o que Belém evidencia: não há meta climática capaz de sobreviver a estruturas de governança que reproduzem desigualdade, hierarquia e distanciamento da realidade dos povos da floresta.

A crise climática não é uma crise de natureza. É uma crise de política, de poder, de imaginação institucional.

BELÉM COMO ESPELHO, NÃO COMO CENÁRIO

A Amazônia não permite que a narrativa se dissocie da realidade. Aqui, clima, território, raça e poder coexistem de forma indissociável. Por isso mesmo, a COP30 não pode – e não deve – ser tratada como um enclave técnico apenas.

A carta da ONU, os protestos, as limitações de acesso e a dificuldade de garantir condições equitativas de participação mostram que a governança climática ainda opera a partir de estruturas que produzem as mesmas exclusões que diz combater.

CONCLUSÃO: A COERÊNCIA CLIMÁTICA COMEÇA NA GOVERNANÇA SOCIAL

A distância entre metas e práticas não é um problema de comunicação, é um problema de estrutura. E estruturas só mudam quando incluímos, de forma real, aquilo que o sistema insiste em considerar periférico: território, ancestralidade, justiça racial, desigualdade e poder.

A governança social oferece a lente que falta:

  • Não basta medir carbono; é preciso medir quem decide.
  • Não basta falar de futuro; é preciso escutar o presente.
  • Não basta anunciar metas; é preciso construir instituições capazes de sustentá-las.

A COP30 mostra que ainda estamos longe dessa coerência. Mas também mostra que já não é mais possível ignorá-la. Porque, como lembra Krenak, “não existe futuro possível enquanto insistirmos em repetir as práticas que criaram o presente.”


SOBRE A AUTORA

Ana Bavon é advogada e estrategista especializada em governança social, impacto corporativo e responsabilidade institucional, fundador... saiba mais