Da Olimpíada nazista à Copa do Qatar: como fica a ética dos eventos esportivos?

Mais de 6,5 mil imigrantes da Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh morreram na construção de hotéis e estádios para a Copa do Mundo de 2022

Crédito: Ohmega1982/ iStock

Ofer Idels 5 minutos de leitura

Com a Copa América, o Campeonato Europeu da UEFA e os Jogos Olímpicos de Paris acontecendo nas próximas semanas, o segundo semestre promete ser uma grande celebração do esporte.

No entanto, muitos eventos esportivos têm sido realizados em países com históricos terríveis de violações dos direitos humanos, com poucos protestos por parte de torcedores, emissoras e governos. Em um mundo onde celebridades são cobradas a ter altos padrões morais, essa incoerência é impressionante.

A Copa do Mundo de 2022, no Qatar, foi marcada por acusações de “lavagem esportiva”, danos ambientais, custos exorbitantes e, o que é mais grave, violações dos direitos humanos – incluindo o tratamento dado pelo país às mulheres, à comunidade LGBTQIA+ e a trabalhadores imigrantes.

Entre as alegações amplamente divulgadas, havia uma estatística especialmente angustiante: mais de 6,5 mil trabalhadores imigrantes da Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh morreram enquanto construíam hotéis e estádios para a Copa do Mundo de 2022. Isso significa que cada minuto de jogo no torneio custou a vida de uma pessoa.

Estádio Al Janoub, no Qatar (Crédito: FIFA/ Divulgação)

Embora o governo do Qatar tenha estimado o número de mortes em apenas 47, esses abusos não eram segredo durante a preparação para o evento. Mesmo assim, tiveram pouco impacto na opinião pública.

Nas semanas que antecederam o torneio, os torcedores estavam mais preocupados com o efeito do torneio no calendário da temporada regular de futebol e com a proibição de consumo de álcool em um país muçulmano.

Os apelos a um boicote não ganharam força e o evento acabou registrando índices elevados de audiência. Em uma pesquisa da BBC o torneio chegou a ser classificado como a melhor Copa do Mundo do século.

A Copa do Qatar, foi marcada por acusações de “lavagem esportiva”, danos ambientais e violações dos direitos humanos.

Somente ganância e corrupção explicam como isso aconteceu. Há provas substanciais de corrupção tanto dentro da FIFA quanto do Qatar, particularmente no que diz respeito ao processo de licitação para os jogos.

Relatórios também indicam que alguns torcedores foram pagos pelo país anfitrião para cantar e torcer e que celebridades foram pagas para assistir e endossar o evento, desviando assim o foco do histórico de violações dos direitos humanos do Qatar.

Mas demonstrações tão flagrantes de ganância nem sempre são recebidas com apatia. Em 2021, a tentativa de formar uma Superliga Europeia (torneio de futebol que seria disputado apenas pela elite dos clubes europeus) enfrentou críticas generalizadas e veementes de torcedores, jogadores, técnicos e políticos. Com isso, a iniciativa multimilionária foi rapidamente cancelada.

O APELO EMOCIONAL DO ESPORTE

Falando claramente, os abusos dos direitos humanos no Qatar são imperdoáveis. No entanto, a fascinação da humanidade pelo esporte é emocional em vez de racional, o que torna extremamente difícil analisar ou explicar isso de um ponto de vista objetivo.

Portanto, vale a pena considerar como os organizadores abordaram as preocupações com os direitos humanos na preparação para a Copa do Mundo de 2022. Pouco antes da abertura, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, e a secretária-geral, Fatma Samoura, escreveram o seguinte em uma carta às equipes participantes:

“Por favor, concentrem-se agora no futebol! Sabemos que o futebol não vive em um vácuo e estamos cientes de que existem muitos desafios e dificuldades de natureza política em todo o mundo. Mas, por favor, não permitam que o futebol seja arrastado para as batalhas ideológicas ou políticas que existem.”

Crédito: Emilio Garci / Unsplash

Tal declaração pode parecer cínica e calculista, mas reflete uma percepção generalizada de que os esportes modernos são puros, universais e um fim em si mesmos, em vez de um meio para um fim. Isso é frequentemente expresso em afirmações como “esporte é arte”, ou que o esporte não deve se misturar com política.

O apelo do esporte, tanto para os participantes quanto para os espectadores, reside, portanto, na sua capacidade de unir as pessoas em uma experiência autêntica do aqui e agora. Os atletasres em campo são muito mais do que pessoas suadas vestindo shorts e chutando uma bola. Para os espectadores, eles são heróis de pura beleza.

muitos eventos esportivos têm sido realizados em países com históricos terríveis de violações dos direitos humanos.

Isso pode ajudar a entender as respostas totalmente diferentes em relação à Copa do Mundo de 2022 e à Superliga. A Superliga visava usurpar a estrutura tradicional do futebol para beneficiar os grandes clubes em detrimento dos pequenos, mas foi percebida como uma afronta à pureza do esporte.

No entanto, os fãs podem ter sido capazes de aceitar o número de mortos na Copa do Mundo do Qatar como um sacrifício necessário para preservar o poder universal e unificador do esporte moderno.

A "OLIMPÍADA NAZISTA" DE 1936

Um momento decisivo na formação do ethos esportivo moderno foram os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, também conhecidos como a “Olimpíada Nazista”. O controverso evento desencadeou um movimento de boicote generalizado, que argumentava que realizar e respeitar os jogos sob um regime fascista e antissemita mancharia a pureza do esporte e legitimaria o Terceiro Reich perante um público global.

No entanto, os jogos continuaram, dando uma demonstração poderosa da capacidade do esporte de fazer o mundo ignorar crimes indescritíveis. Nações opressoras hoje ainda seguem o exemplo.

Olimpíada de 1936, em Berlim (Crédito: Reprodução)

Quase 100 anos depois, o Qatar é candidato a sediar a Olimpíada de 2036. Dado o número de mortes na Copa do Mundo de 2022, é provável que o evento custe a vida de milhares de trabalhadores novamente e deve ser enfrentado com forte resistência.

Mas a história nos ensina que os protestos não devem ser baseados apenas em conceitos abstratos como “lavagem esportiva” ou perspectivas cínicas que ignoram o significado emocional e tangível que o esporte tem na vida das pessoas.

Como visto no caso da Superliga, os torcedores são capazes de lutar pela pureza dos esportes que amam. Mas essa luta não deve começar apenas após o segundo semestre deste ano. Como fãs, deveríamos saber que a ética não pode ser adiada.

Este artigo foi publicado no “The Conversation” e reproduzido sob licença Creative Common. Leia o artigo original.


SOBRE O AUTOR

Ofer Idels é pós-doutorando na Universidade Ludwig Maximilian, de Munique. saiba mais