“Desculpe, só tenho cartão”

O que o Pix e os cartões de débito e crédito têm a ver com a vida de quem depende de doações em dinheiro

Crédito: rawpixel.com

Marcelo Conde 3 minutos de leitura

Prince, um migrante de Gana que passa seus dias em frente à saída de um supermercado na esquina de onde eu vivia em Barcelona, balança seu copo transparente de plástico, com cinco ou seis moedas dentro. O som das moedas fazendo o papel das palavras do idioma que ele não domina, embora nunca deixe de dar bom dia em castelhano a cada um que passe por ele.

Seu bom dia e suas moedas são respondidos quase 100% das vezes com um mecânico “desculpe, só tenho cartão”. O que faz com que o copo de Prince receba apenas uma ou outra moeda a mais.

Na linha 1 do metrô de Madri, que uso para ir ao trabalho, artistas, que fazem a vida cantando ou criando rimas para os passageiros, ouvem explicação semelhante. O mesmo acontece com moradores em situação de rua que pedem dinheiro nos bares de Lavapiés. “Desculpa, não tenho nada na carteira”.

Embora muitas vezes seja apenas uma desculpa para negar ajuda ou mesmo a forma mais rápida e covarde de sair de uma situação em que o mundo real nos lembra aonde chegamos como sociedade, o fato é que as pessoas realmente estão andando com menos dinheiro vivo.

Se o dinheiro em espécie mal pode sobreviver no mundo que ele mesmo criou, o que dizer do que este mesmo mundo sempre deixou à margem?

No Brasil, assim como na Espanha, os pagamentos eletrônicos explodiram nos últimos anos. De acordo com dados do Banco Central apresentados no Relatório de Tendências 2022, R$ 40 bilhões de dinheiro em espécie deixaram de circular no país entre os meses de janeiro e outubro de 2021.

Já o total de transações realizadas através do Pix bateu recorde no número de transações no dia 05 de agosto: foram quase 90 milhões de movimentações em um único dia, sendo que os valores liquidados nessa data ultrapassaram a marca de R$ 53,1 bilhões, segundo o Banco Central.

O FIM DO DINHEIRO VIVO?

O comércio eletrônico mostra os mesmos dados e é o maior beneficiário desse movimento que parece inevitável e sem volta. A Suécia, por exemplo, prevê que será uma sociedade sem circulação de dinheiro impresso até 2023. Hoje, de acordo com o Banco Central sueco, apenas 6% de sua sociedade usa notas de dinheiro.

Não que isso seja viável e aconteça em todos os países, especialmente os que ainda contam com muita gente vivendo em regiões rurais. De qualquer forma, a população que depende de doações em dinheiro vive, em sua maioria, nos grandes centros urbanos habitados pelas classes média e alta, quase totalmente bancarizadas.

Tais classes foram impactadas durante anos por campanhas do estilo “Não dê o peixe, ensine a pescar”, como as placas fixadas pela prefeitura de Foz do Iguaçu em 2021 com o texto “Não dê esmola, dê oportunidade”. Ou ainda pior, como a campanha “Sua esmola mantém ele na rua”.

Tal discurso transfere a quem ajuda a culpa de um sistema econômico e político, bem explicado pelo padre Júlio Lancellotti no Twitter ao comentar esta mesma campanha.

Se o próprio dinheiro em espécie mal pode sobreviver no mundo que ele mesmo criou, o que dizer daqueles que este mesmo mundo sempre deixou à margem? Por mais bons dias que Prince continue dando, mais músicas que os artistas cantem nos metrôs, as carteiras, assim como os rostos, parecem estar virados para o outro lado.


SOBRE O AUTOR

Marcelo Conde (@marcelocostaconde) é escritor, autor do romance “Apneia” e de “Amanhã Vai Ser Pior”. Publicitário de formação, trabalh... saiba mais