Liderança como espelho: o outro impacto das mulheres negras no poder
Sustentar mulheres negras no poder não é um gesto de generosidade. É um teste para a maturidade emocional de uma organização

Estava diante do diretor executivo de uma grande empresa, explicando, com a serenidade de quem domina o assunto, como indicadores e metas de diversidade, equidade e inclusão não eram apenas “modismos”, mas instrumentos críticos para alinhar a cultura organizacional à realidade social que ela pretende impactar.
Falei sobre o papel estratégico desses indicadores, sobre como eles funcionam como um sistema de early warning, revelando fissuras culturais antes que elas se convertam em crises de reputação ou jurídicas.
Falei, sobretudo, sobre a necessidade de uma governança social que não se restrinja ao compliance, mas que seja, de fato, um compromisso ético com a diferença.
Ao final, um silêncio breve se instalou na sala. Em seguida, ele respirou fundo e disse, em voz alta, diante de todos: “Suas explicações me expõem. Eu não conhecia o tema e isso me faz sentir… desconfortável.”
Aquela frase dizia mais sobre a estrutura do poder do que sobre qualquer resistência individual. Ser uma mulher negra em posição de autoridade é, muitas vezes, desestabilizar. É expor o quanto as lideranças estão preparadas (ou não) para lidar com a diferença em um lugar que acreditavam ser absolutamente conhecido por eles.
O que poderia ter se tornado um abismo, no entanto, virou uma ponte. Com o avanço da conversa, eu e aquele CEO conseguimos transformar o desconforto inicial em diálogo estratégico. Reconhecemos que estávamos em lugares distintos – ele, um homem branco forjado na visão tradicional de negócios; eu, uma mulher negra com uma leitura crítica das estruturas.
E foi exatamente essa assimetria que nos permitiu avançar. A partir do contraste, surgiram decisões de pura inteligência institucional: escolhas ancoradas em dados, mas também em coragem, que não apenas mitigaram riscos como elevaram o nível de consciência da organização sobre o mundo em que ela opera.
a diversidade autêntica não é uma conquista serena, ela é uma força crítica que desorganiza o status quo.
Esse episódio nunca saiu da minha mente porque ele traduz, com uma precisão quase brutal, o que é ser uma mulher negra ocupando um espaço de autoridade. Não se trata apenas de competência técnica, mas da capacidade – ou incapacidade – do outro de suportar a alteri- dade em um lugar que acreditava ser exclusivamente seu.
Na lente psicanalítica, a mulher negra em posição de poder é aquilo que Lacan chamaria de o real que retorna: o elemento que o simbólico da organização tentou recalcar, mas que insiste em aparecer. Ela carrega em si a diferença radical, aquela que convoca o outro a se perceber e, inevitavelmente, a se desnudar.
Como escreveu Grada Kilomba, “o corpo negro, quando fala, não é visto como conhecimento, mas como experiência – uma experiência que o cânone tenta silenciar.”
No espaço corporativo, esse silenciamento nem sempre é explícito; muitas vezes, ele se revela em pequenas reações, olhares atravessados, interrupções veladas. Ou em declarações como a que ouvi naquele dia, ditas em tom de segurança e autoridade, mas carregadas de uma confissão: “você me desorganiza”.

Frantz Fanon já nos alertava que não há inocência no encontro com o outro. A mulher negra, sobretudo em cargos de liderança, é um espelho que devolve aos seus pares a imagem de um poder que sempre se quis neutro e meritocrático, mas que, diante dela, se revela profundamente particular e frágil.
Em contrapartida, o debate global sobre meritocracia e “early warning systems” corporativos frequentemente utiliza a expressão em inglês “glass cliff”, referindo-se à tendência de empresas colocarem mulheres – e, sobretudo, mulheres negras – em posições de liderança durante crises, sem lhes dar os recursos necessários.
Isso reforça a função perturbadora dessas lideranças: elas são chamadas em momentos críticos, expostas ao risco, testando a capacidade real das organizações de sustentar o poder em diversidade.
o corpo negro, quando fala, não é visto como conhecimento, mas como uma experiência que o cânone tenta silenciar.
Mas é exatamente aí que reside sua potência ético-política. Emmanuel Levinas nos lembra que o encontro com o rosto do outro é sempre uma demanda ética. Essa presença é perturbadora porque convoca uma ética relacional: o rosto da outra pessoa exige responsabilidade. Não há como desviar sem, de algum modo, se desumanizar.
Sustentar mulheres negras em conselhos e diretorias não é um gesto de generosidade. É um teste para a maturidade emocional de uma organização. Um convite para que ela se perceba para além de seus mitos fundadores.
Talvez seja esse o convite mais radical que o Julho das Pretas nos faz: compreender que a diversidade autêntica não é uma conquista serena, ela é uma força crítica que desorganiza o status quo. E é justamente essa tensão que torna possível qualquer transformação real.
“A mulher negra no poder não apenas transforma estruturas – ela revela se o poder está pronto para ser humano.”
