Lugar de mulher é onde ela quiser. E qual o lugar da mulher preta?

Nosso lugar é em qualquer espaço que possamos transformar com nossa presença e nossa voz

Crédito: Freepik

Tatiana Lemes 4 minutos de leitura

Recentemente celebramos mais um Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e algumas reflexões são necessárias para entendermos onde estamos e para onde caminhamos como sociedade.

Como mulher negra, nascida e criada na periferia da capital paulista, minha trajetória e meus desafios pessoais se assemelham e se diferenciam de tantas outras mulheres negras da minha geração.

Cresci em uma família pobre, a caçula de três filhas de trabalhadores com poucos recursos materiais e de enfrentamento às dificuldades impostas por nossa realidade. Uma criança alegre, proativa, precoce, extremamente curiosa e inquieta.

Aprendi a ler em casa aos cinco anos, com a ajuda da minha irmã mais velha. Iniciei a antiga primeira série do ensino fundamental com apoio para fazer o que todas as crianças precisam nessa idade: estudar, aprender e se desenvolver.

Como nem tudo são flores, houve espinhos, secas e dilúvios, mas as sementes plantadas germinaram no devido tempo.

Concluí o ensino fundamental, segui para o ensino médio, conciliava sem dificuldades com o técnico, na época oferecido pelo Centro Paula Souza, e cheguei à universidade. Quantos choques de realidade, aprendizados, dificuldades, preconceitos e micro agressões!

Na sala de aula da universidade encontrei as primeiras respostas para as minhas muitas perguntas acerca da sociedade, subjetividades e transformação de nossa realidade. A psicologia, a sociologia e a filosofia ampliaram a minha visão de mundo e me ajudaram no fortalecimento do meu propósito profissional.

Mas ainda faltava algo. Estive em lugares nos quais sempre era a única ou uma das poucas pessoas negras no ambiente. Esse "algo" que faltava era a representatividade e o pertencimento.

Ser a única pessoa negra em espaços predominantemente brancos não apenas me fazia sentir isolada como ressaltava a desigualdade – momentos em que a síndrome da impostora me fazia questionar minhas realizações. 

participo de coletivos que refletem e propõem estratégias para impulsionar outras mulheres aos locais em que elas precisam estar.

A sensação era de que, apesar de todo o meu esforço, ainda existia um abismo que me separava das mulheres do meu bairro, das garotas da minha turma do ensino fundamental e médio, das mães e crianças que eu atendia na clínica ou em projetos sociais em que fui voluntária.

Essas mulheres, na maioria das vezes, continuavam expostas a vulnerabilidades, sem esperanças, sem objetivos de vida, sem políticas públicas ou sociais que as apoiassem.

Isso me motivou a ir além. A entender aspectos da minha ancestralidade, das construções hegemônicas, das dinâmicas de poder. Entender que, para termos diversidade, precisamos fomentar a inclusão. E a inclusão só se dá quando buscamos aliados em pessoas e empresas que, assim como eu, acreditam na importância de abrir portas para que outras mulheres negras ocupem esses espaços.

Na agência All Set, tive muitos aprendizados que se transformaram em oportunidades para propiciar esse espaço. Fui uma das primeiras mulheres negras da agência e o “teste do pescoço” sempre me deixou desconfortável. Tínhamos mulheres negras, mas poucas em posição de liderança.

Crédito: Matheus Leite

Dessa inquietude surgiu, em 2021, o Coletivo Colmeia, espaço destinado a incentivar, preparar e fortalecer colaboradoras autodeclaradas pretas e pardas que já exerciam ou que tinham interesse em exercer papéis de liderança criativa e gestão.

A educação – que sempre foi minha aliada – o protagonismo, a  orientação e a representatividade tornaram-se ferramentas para construir pontes. Trabalhamos um conteúdo robusto, passando por letramento, consciência étnica racial e inspiração. Entendendo e discutindo aspectos históricos, estruturais, técnicos e a perspectiva afrofuturista. Compartilhamos referências teóricas de outras mulheres negras em diferentes espaços da sociedade.

Entendo que lugar de mulher preta não é apenas onde ela quiser, mas também onde ela for necessária.

No segundo momento do Coletivo, o foco foi a promoção de autoconhecimento, pertencimento, estratégias, metas e planos de ação, em mentoria e conversas individualizadas. Já no terceiro momento, voltamos nossos olhares para o desenvolvimento de competências (soft e hard skills), explorando temáticas como “o que é liderar?" e “como posso me desenvolver?”.

Em seu terceiro ano, o Coletivo tem uma nova proposta. Nossos objetivos principais seguem sendo empoderar e fortalecer as mulheres da All Set. Porém, queremos promover um espaço seguro para o acolhimento, a escuta ativa, as trocas de experiências e aprendizados para que todas possam compartilhar suas dores e potências.

Em 2022, éramos apenas 22 mulheres pretas/ pardas na agência, duas em posições de liderança. Hoje somos 33 mulheres, oito em posições de liderança. 

    Amo meu trabalho, ocupo lugares onde tenho voz ativa, interajo constantemente com pares, participo de coletivos que dialogam, refletem e propõem estratégias efetivas para impulsionar outras mulheres aos locais em que elas precisam estar.

    Entendo que lugar de mulher preta não é apenas onde ela quiser, mas também onde ela for necessária. O nosso lugar é no centro das discussões, nas mesas de decisão, nas universidades, nos escritórios, nas ruas e em qualquer outro espaço que possamos transformar com nossa presença e nossa voz.

    Ainda há muito a ser feito, mas sei que cada passo dado é um passo em direção a um futuro em que mulheres negras, como eu, não sejam mais exceções, mas a regra.


    SOBRE A AUTORA

    Tatiane Lemes é psicóloga, MBA em Gestão de Pessoas e atua como HRBP com foco em Cultura e DE& saiba mais