Morte de usuários brasileiros não comove apps LGBT. E nem a sociedade

Sem representantes no país e com problemas de segurança, Grindr e Hornet falham em proteger seus usuários

Créditos: Yogesh More/ Marina Demeshko/ iStock

Camila de Lira 11 minutos de leitura

Assaltos, sequestros e emboscadas contra usuários brasileiros de aplicativos de encontros LGBTQIA+ não alteram, em nada, o funcionamento das plataformas. Nem mesmo casos recentes de morte alteram as políticas e práticas de segurança de apps como os norte-americanos Hornet e Grindr. Sem representantes no país, as empresas não oferecem ferramentas transparentes para denúncia e falham ao manter perfis falsos no ar. 

Num país onde uma pessoa LGBTQI+ é assassinada a cada 38 horas, os aplicativos geram ainda mais risco para uma população que já é vulnerabilizada.

No dia 12 de junho, o jovem Leonardo Rodrigues Nunes, de 24 anos, foi assassinado após marcar um encontro pelo Hornet, aplicativo do qual era assinante. Léo, como era conhecido por amigos, morava no centro de São Paulo e foi encontrado morto no bairro do Sacomã, próximo à região central da cidade. Esse não foi um  caso isolado.

Dados da Polícia Civil do estado de São Paulo mostram que, no ano passado, 96% dos sequestros ocorreram por meio de aplicativos de namoro e encontros. A maioria acontece com homens.

A população gay e trans é ainda mais exposta à violência. Antes do episódio trágico de Leo, houve notícias de agressões, extorsões e morte de homens gays em Vitória, Brasília, Curitiba, Porto Alegre e Rio de Janeiro. 

Em cada uma das ocorrências, as vítimas tinham marcado encontros em aplicativos voltados ao público LGBTQIA+. Plataformas como Grindr e Hornet, cujo maior apelo mercadológico é a ideia de que são um lugar seguro para homens encontrarem outros homens, mulheres encontrarem outras mulheres. Sem julgamentos, sem pressões e sem exposição. 

APPS ATRAEM MUITOS BRASILEIROS

O Grindr tem atualmente 13,5 milhões de usuários ativos mensais e funciona como um app de relacionamento por geolocalização. A pessoa consegue achar pretendentes que moram ou estão próximos. No app, há espaço para chat, onde é possível marcar encontros rápidos.

Já o Hornet, voltado exclusivamente para homens, diz ter 40 milhões de usuários conectados no mundo todo. O app se coloca como uma "rede social queer" e conta com funções de compartilhamento de imagens e conteúdo, como em um feed

O Brasil está na lista dos 10 maiores usuários do mundo do Grindr.  De acordo com o site Statista, o país é a quarta maior audiência do app por quantidade de downloads. O Hornet não libera números por localidade, mas cita o mercado brasileiro em suas apresentações oficiais.

Fonte: Statista

"Essas plataformas não estão protegendo a comunidade a quem eles, supostamente, deveriam servir", afirma o professor de direito da Universidade da Califórnia Ari Ezra Waldman.

Fundador do Legally Queer, iniciativa que trata de educar o público queer sobre segurança digital e privacidade de dados, Waldman pesquisa ativamente os impactos da tecnologia em grupos marginalizados e minorizados da sociedade. 

Em 2019, ele publicou um artigo no "The New York Times" em que dizia que os aplicativos de encontro como Grindr eram "inseguros por design". O professor mantém a sua opinião. Para ele, questões como a falta de verificação dos perfis e a pouca moderação das plataformas são opções de design que deveriam ser mudadas para garantir mais segurança.

FÁCIL, PRÁTICO MAIS POUCO SEGURO

Para criar um perfil no Hornet, por exemplo, o usuário só precisa de um endereço de e-mail válido. A identidade não é verificada, muito menos a documentação ou as conexões que a pessoa tem em outras redes sociais.

Embora as diretrizes do app proíbam a utilização de fotos de terceiros, a plataforma não trava ou cancela automaticamente imagens percebidas como retiradas da internet. A Fast Company Brasil criou um perfil no aplicativo em menos de cinco minutos, com fotos retiradas de uma página do Twitter.

A segurança do usuário não é uma modulação de negócio, é um estabelecimento obrigatório de garantia de direitos fundamentais.

Em ambos os aplicativos, é possível ter acesso a um selo de verificação, mas são funcionalidades pagas. No Hornet, a verificação custa R$ 4,90. A assinatura do app permite acesso a algumas formas de elevar os níveis de proteção do usuário, como o filtro de mensagens verificadas.  

De acordo com o professor, advogado e pesquisador sobre direitos digitais e a população queer, Ramon Silva Costa, a proteção dos usuários não pode ser uma parte paga, ela deve estar na estrutura dos aplicativos. "A experiência de segurança para o usuário não é uma modulação de negócio. Ela é um estabelecimento obrigatório de garantia de direitos fundamentais."

Os aplicativos dão dicas do que fazer para marcar encontros seguros. Dicas que, inclusive, foram seguidas por Leonardo à risca. "As plataformas não podem colocar o ônus e o peso de ter encontros seguros apenas nos ombros dos usuários", diz Waldman.

UM APP QUE NÃO FALA PORTUGUÊS

Proteger a comunidade significa rastrear, no país em que os apps atuam, a quais violências e riscos uma pessoa LGBTQIA + está exposta. Segundo Costa, as plataformas falham ao não olhar para a especificidade do público brasileiro. 

"A tecnologia não construiu espaço de insegurança. As pessoas LGBTQIA+ já vivem em espaço de insegurança, principalmente em uma sociedade como a brasileira, com índices enormes de homofobia e violência contra essa população".

Quando dão dicas "únicas" e oferecem a mesma ferramenta de denúncia para qualquer público, os aplicativos mostram não entender que estão lidando com um país de alta complexidade, no qual a vivência da sexualidade muda de acordo com a cidade, a região, a raça e o status econômico. 

Ari Waldman (Crédito: Divulgação)

Apesar da importância do mercado brasileiro, nem o Hornet, nem o Grindr têm representantes no país. O Hornet nem ao menos tem uma equipe no Brasil. O app chegou a contar com um time de cinco pessoas por aqui, entre 2017 e 2022.

Uma delas era Márcio Rolim. Por quatro anos, o jornalista foi responsável pelo conteúdo oficial publicado na rede social queer. Ele era editor-chefe do conteúdo que aparecia na aba de notícias do Hornet brasileiro, além de participar das campanhas de comunicação institucional da companhia no país. 

"Tínhamos que seguir uma cartilha de comunicação LGBT e comunicação para o público trans usada pelo mercado norte-americano. Para a gente, não servia. Os conceitos do que é queer e do que é negritude nos Estados Unidos são diferentes do Brasil. Eles nunca quiseram ouvir [sobre as diferenças do público brasileiro]".

questões como a falta de verificação dos perfis e a pouca moderação das plataformas são opções de design que deveriam ser mudadas para garantir mais segurança.

Era como se o aplicativo fosse feito e repensado para moradores de São Francisco e não de São Paulo. Além disso, o gerente direto do editor era mexicano e atuava em toda a América Latina. "Era uma luta para entender as coisas que estávamos falando por aqui", lembra Rolim.

Em 2019, quando começaram as conversas sobre possíveis golpes e crimes usando apps para o público gay, o assunto chegou a ser levantado em reuniões, segundo Márcio Rolim, mas a decisão interna foi de não se comunicar sobre isso com o público.

 "Eles se recusaram a falar com a comunidade. Não havia um banner, uma aba, nada. O assunto foi ignorado pelos diretores na época, eles consideravam o algoritmo do aplicativo infalível". conta Rolim.

Desde 2019, o Hornet usa inteligência artificial para apoiar a filtragem de conteúdo. Mas o sistema, assim como a diretoria do app, não fala português. Não entende as nuances da língua – e nem do pajubá, nome dado às gírias gays. 

PODIA TER SIDO EU

Casos extremos de mortes ligadas a aplicativos viram notícia. E, com razão, causam reações no público, como o ocorrido com Leonardo Rodrigues Nunes, em São Paulo. No entanto, os roubos, sequestros e pequenos golpes sofridos por usuários nem sempre ganham destaque. 

Apenas no Sacomã, onde Léo foi atacado, há denúncias de ao menos nove casos de assalto e sequestro ligados a encontros de apps. Um deles aconteceu com Gabriel Garcia Mendes, de 24 anos. Ele conheceu um rapaz no Hornet e, no final de março, depois de dias de conversa, resolveu encontrá-lo.

O instrutor de dança se certificou de que conhecia o local. E que, do outro lado, o perfil era verdadeiro. Tinha o número, fotos e contato do rapaz. Quando chegou no endereço marcado – o mesmo em que Léo foi encontrado morto meses depois –, foi surpreendido por uma emboscada. Foi assaltado a mão armada, perdeu o celular e os cartões do banco.

Hilário Júnior (Crédito: Divulgação)

"Moradores da rua, que me ajudaram, disseram que tinha acontecido a mesma coisa com um menino na semana anterior", contou. Ele passou semanas sem comentar o ocorrido com conhecidos, por vergonha. Não encontrou apoio no aplicativo. Em meio a boletins de ocorrência e pedidos para o banco, a área de denúncia de perfil do Hornet foi apenas uma burocracia a mais.

Como o boletim de ocorrência digital, o espaço que o aplicativo oferece para receber denúncias é um formulário. O documento conta com algumas perguntas traduzidas do inglês e outras áreas com autopreenchimento. Não tem chat, o usuário não é levado para um grupo de suporte. Só recebe um e-mail automatizado. E ainda não tem atualização de acompanhamento do caso. 

Desde março deste ano, o publicitário Hilário Júnior, conhecido no Twitter (atual X) como @metheoro, faz alertas de golpes no Grindr para os seus mais de 20 mil seguidores. O publicitário mostrou que um perfil falso no aplicativo tentava convencê-lo a sair para um encontro no Sacomã. As condições da conversa se tornaram suspeitas, o que motivou Júnior a investigar.

Quando pesquisou, viu que o lugar escolhido pelo falso perfil era uma rua residencial, deserta. Júnior descobriu que as fotos usadas pelo usuário com quem conversava pertenciam a outra pessoa. E, com ajuda de amigos e de seus seguidores, denunciou o perfil no Grindr – que o manteve no ar. 

Meses depois, a notícia da morte de Léo fez a história ressurgir. "Eu me surpreendi, pois o meu caso era em um lugar muito próximo ao do Leonardo. O lugar onde ele foi encontrado é 1,6 km distante de onde eu estava sendo chamado", conta Júnior.

Em 19 de junho, quando conversou com a reportagem da Fast Company Brasil, o publicitário informou que o perfil falso que o chamou para o local continuava no ar. 

A notícia sobre Léo motivou Gabriel a falar sobre o crime. Ele também usou o perfil no X e viu as postagens de Hilário Júnior. Como publicitário, se conectou com muitos outros jovens que passaram por situação parecida e criou um grupo para reunir todas as vítimas que tinham boletim de ocorrência no Sacomã. Segundo ele, a polícia está mantendo contato.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) ouviu outras vítimas do mesmo golpe em que Léo caiu e que está tentando identificar os suspeitos. 

RESPOSTA NO SIGILO

De acordo com Ari Waldman, da UCI, iniciativas como responder a denúncias, retirar perfis falsos do ar e escutar os usuários ajudam a criar um espaço mais seguro para a comunidade LGBTQIA+. 

Até o fechamento desta matéria, apesar de tentar falar com representantes do Hornet, a reportagem não obteve retorno. Já o Grindr mandou uma nota de pesar e indicou estar "trabalhando com autoridades para apoiar investigações de incidentes relacionados a usuários". A publicação segue aberta para qualquer manifestação das empresas.

Enquanto a Fast Company Brasil apurava essa história, outro caso de assassinato aconteceu, desta vez, no Espírito Santo. No domingo (23 de junho), o profissional de saúde Luciano Martins, de 46 anos, foi encontrado morto pela polícia capixaba. O corpo do rapaz estava no lixão de Vila Velha, com sinais de tiro, esfaqueamento e estrangulamento. 

Segundo informações de familiares e amigos, prestadas a jornais locais, ele utilizou o Grindr no final de semana para marcar encontros. A Polícia Civil do Espírito Santo investiga o caso como latrocínio.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais