Motor de crescimento? IA pode aprofundar a desigualdade entre Norte e Sul Global

A inteligência artificial pode ser uma aliada poderosa – ou se tornar o maior agente de desigualdade da história

figuras humanas simbolizam crescimento na carreira
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Faisal Hoque 4 minutos de leitura

Nos últimos cinco anos, a inteligência artificial deixou de ser um tema restrito a especialistas e se tornou um dos principais motores do crescimento econômico mundial. O impacto da tecnologia é tão grande que, em outubro, o Conselho de Segurança da ONU realizou seu primeiro debate aberto sobre o assunto.

Embora o encontro tenha trazido poucos resultados práticos, uma resolução da Assembleia Geral que autoriza a criação de um painel científico independente sobre IA pode ter efeitos duradouros. Uma das principais missões desse grupo será entender como a tecnologia pode impulsionar o desenvolvimento sustentável sem aprofundar desigualdades.

Essa preocupação não é nova – tem raízes históricas. A inteligência artificial depende de poder computacional, infraestrutura em nuvem e grandes volumes de dados – recursos que estão concentrados nas mãos dos países do Norte Global.

A África, por exemplo, tem menos de 1% da capacidade mundial de data centers, o que a torna dependente de infraestruturas caras localizadas em outras regiões.

Mesmo a Índia – uma grande potência em tecnologia da informação – detém apenas 3% dessa capacidade, apesar de abrigar quase 20% da população mundial. Enquanto isso, trabalhadores do Sul Global recebem cerca US$ 2 por hora para criar, limpar e rotular dados usados no treinamento de modelos desenvolvidos no Ocidente.

Para muitos, isso é uma versão moderna da exploração colonial, só que digital: trabalho e dados fluem para o Norte, onde geram riqueza, mas quase nada desse valor gerado retorna aos países em desenvolvimento.

A IA pode se tornar o mais poderoso motor de desigualdade da história da humanidade.

Se o Sul Global continuar apenas consumindo tecnologias importadas, corre o risco de perder não só oportunidades econômicas, mas também sua soberania digital.

A Revolução Industrial gerou riquezas imensas para a Europa e para a América do Norte, mas deixou grande parte do mundo presa a relações de dependência que duraram gerações. A IA pode repetir esse ciclo – só que de forma muito mais rápida e em escala ainda maior.

POR QUE AS EMPRESAS DEVEM SE PREOCUPAR

A ironia é que esse desequilíbrio também prejudica as próprias empresas que o alimentam. Em termos populacionais, a Índia já ultrapassou a China e países como a Nigéria vivem um forte crescimento demográfico. Esses serão os grandes mercados do futuro.

Mesmo assim, muitas multinacionais ainda tratam essas regiões como simples “fábricas de dados”. Ao ignorar os contextos culturais e sociais locais, correm o risco de não compreender os consumidores de amanhã. Um modelo de IA que não entende como boa parte do mundo enxerga temas como família, risco e confiança está condenado ao fracasso.

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E já há exemplos claros disso. A M-Pesa revolucionou o sistema bancário no Quênia com transferências via celular, enquanto bancos ocidentais ainda insistiam em oferecer cartões de crédito.

Hoje, empresas indianas desenvolvem chatbots capazes de conversar com milhões de pessoas que falam línguas locais pouco conhecidas. Se as multinacionais não começarem a pensar em como atender essas populações, correm o risco de ficarem de fora quando esses mercados amadurecerem.

O QUE PRECISA MUDAR

Evitar um novo tipo de “colonialismo algorítmico” e conquistar espaço nos mercados emergentes de IA vai exigir ação conjunta de governos, empresas e instituições globais.

Infraestruturas como data centers, redes de energia e centros de pesquisa devem ser tratadas como investimento estratégico – financiadas, assim como estradas e portos, com recursos combinados de bancos de desenvolvimento e fundos soberanos. Sem capacidade computacional própria, os países continuarão sendo “inquilinos digitais”, e não donos de sua própria tecnologia.

mapa-mundi dividido entre Norte e Sul Global

Governos também precisam criar mecanismos de governança – como fundos públicos de dados – para negociar como as informações de seus cidadãos serão usadas no treinamento de modelos globais, garantindo transparência e divisão justa de benefícios. Além disso, o trabalho de anotação e curadoria de dados deve ser remunerado de forma justa e protegido por leis trabalhistas.

E, acima de tudo, é essencial investir em modelos de código aberto, bancos de dados multilíngues e formação de talentos locais, para que as soluções de IA sejam criadas com as comunidades, e não apenas para elas.

Algumas empresas já estão mudando de rumo. Estão investindo em infraestrutura local, criando parcerias genuínas e reconhecendo que lucros sustentáveis ​​vêm da criação de valor com as comunidades, e não da sua exploração.

Países correm o risco de perder não só oportunidades econômicas, mas também sua soberania digital.

Elas entendem que os criadores e trabalhadores de dados de hoje serão os consumidores de amanhã e, potencialmente, também os inovadores de amanhã, se lhes for dada a oportunidade.

A IA tem o potencial de ser um grande fator de igualdade global, ou pode se tornar o mais poderoso motor de desigualdade da história da humanidade. Já vimos o que acontece quando a tecnologia transformadora é monopolizada: a desigualdade se aprofunda, o ressentimento cresce e a instabilidade se instala.

Se quisermos escrever uma história diferente – uma em que o Norte e o Sul globais cocriem o futuro e compartilhem os benefícios da inteligência artificial – devemos agir agora, antes que o fosso se torne intransponível.


SOBRE O AUTOR

Faisal Hoque é fundador da Shadoka, que desenvolve aceleradores e soluções tecnológicas para o crescimento sustentável. saiba mais