“Não vale tudo pelo resultado se a pessoa não estiver feliz”, diz a psicóloga de Rebeca Andrade

Coordenadora de preparação mental do COB, Aline Wolff defende alta performance humanizada e metas adequadas

Crédito: Arquivo Pessoal

Camila de Lira 12 minutos de leitura

Enquanto Rebeca Andrade exalava confiança e tranquilidade na final do solo em Paris, uma mulher chorava de orgulho e alívio na platéia. Era Aline Arias Wolff, psicóloga da atleta e ex-coordenadora de preparação mental do Comitê Olímpico Brasileiro (COB).  

Várias vezes citada por Rebeca em entrevistas, a terapeuta especializada em esportes de alto rendimento acompanha a ginasta há mais de 10 anos. "Viralizei e não sei o que farei com isso direito", diz Aline, com o mesmo bom-humor e leveza que Rebeca encarou a estrela do time norte-americano, Simone Biles.

De Paris, Aline conversou com a Fast Company Brasil e contou sobre sua abordagem humanizada – e inspiradora – para um esportista de alto rendimento. Uma visão que indica que não, não vale tudo pela medalha de ouro. "Não se a pessoa não estiver feliz", diz ela.

FC Brasil – Você está no Comitê Olímpico Brasileiro desde 2013. O que o mundo do esporte de alta performance, do qual é especialista, pode ensinar para o mercado corporativo? 

Aline Wolff – O esporte de alto rendimento tem muito a ensinar no contexto corporativo. No esporte, o atleta precisa ter – quase exalar – segurança. Para chegar nesse nível de confiança, o indivíduo trilha um caminho próprio, se conhecendo, entendendo o que pode e não pode, aprendendo a respeitar os limites do corpo e da mente. Esse processo só acontece se houver um ambiente que favoreça a segurança psicológica.

Estou no esporte de alto rendimento há muito tempo e vejo que esse é o caminho. A união entre desenvolvimento pessoal profundo, autoconhecimento, baseado em encarar o processo de crescimento que é proporcionado por um ambiente que exige da gente o máximo, não só no momento da competição, mas todos os dias.

As Olimpíadas são o momento que todo mundo vê, mas todos os dias exigem muito do atleta. Ele precisa estar consciente dele mesmo e precisa ter uma liderança capaz de escutá-lo. É um ciclo. O atleta cresce, o ambiente proporciona que ele cresça, a liderança cresce junto. É uma espiral. 

Rebeca Andrade se mantém tendo grandes resultados, assim como Simone Biles, mas elas fazem isso sem ser destrutivo. Acredito na alta performance humanizada e sustentável.

Ultimamente, várias organizações estão falando sobre segurança psicológica e sobre saúde mental. Questiono se isso está sendo aplicado no dia a dia, se já estão trazendo o discurso para a prática. Porque é uma aplicação difícil, mesmo.

Quando falo com lideranças e em empresas, digo que não é apenas sobre ressaltar a importância de falar de saúde mental, mas sobre encarar o processo. E requer coragem. Mas tem grandes resultados.

Rebeca Andrade se mantém tendo grandes resultados, assim como Simone Biles, mas elas fazem isso sem ser destrutivo. Acredito na alta performance humanizada e sustentável. 

FC Brasil – As Olimpíadas são o espaço dos "super-heróis", da "superação acima de tudo". Rebeca, no entanto, é extremamente humana. Ela parece mais próxima do público, até nos momentos em que está nervosa. Por que a visão de que atletas são super-heróis atrapalha?

Aline Wolff – Quando o país se emociona com a Rebeca ou com outros atletas, está se comovendo com uma pessoa. O esporte de alto rendimento está mais humanizado. Nunca deveria ter sido diferente disso, mas sabemos que foi. Ser humanizado é o melhor cenário possível, porque é o que faz com que a gente se identifique.

Atletas não são super-heróis, são de carne e osso, sentem emoções, têm dores, eles adoecem. A Simone Biles mostrou isso. E por que não mostraria? Por que temos que colocá-los no lugar de extraterrestres? São de carne e osso como todos nós.

Crédito: Arquivo Pessoal

O processo de autoconhecimento e de segurança em que acredito é baseado em pessoas. Essa perspectiva faz muita diferença. É assim que o atleta tem que ser tratado, como ser humano.

O que significa que, não, não vale tudo pelo resultado se a pessoa não estiver feliz. Perde todo o sentido. Vemos muitos atletas com medalha de ouro no peito, sem perspectiva alguma. Confusos, se perguntando qual o propósito disso.

FC Brasil – Nesse sentido, não tem como esquecer de como a colega de Rebeca, Simone Biles, desistiu dos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021. Ela passou dois anos cuidando da saúde mental. O que isso diz sobre a sua prática?

Aline Wolff – O movimento da Simone, de ter parado e voltado para o topo, é uma prova de que é possível ter alto desempenho mantendo a saúde mental. Ela provou que cuidar da saúde mental não é mimimi, mas o caminho para o sucesso sustentável. Estamos vendo o resultado de que o caminho é o autoconhecimento.

FC Brasil – As demandas por produtividade não são só do mundo esportivo. No dia a dia, parece que temos sempre que bater metas. Mesmo no aspecto pessoal: meta de leitura, meta de exercícios. Como isso afeta nossa saúde mental?

Aline Wolff – A gente está vivendo na sociedade do cansaço. Estamos sendo convidados o tempo todo para fazer mais, render mais, para sermos vistos como aquele que não para. Isso está exaurindo as pessoas.

Como não ser levado por essa maré? Justamente olhando para dentro, se percebendo, se conhecendo, reconhecendo os sinais que corpo e mente nos dão. Entender que algo não está atingindo a nossa necessidade, entender nossos incômodos. Entender quais metas fazem ou não sentido para a nossa vida. 

Você não é o seu resultado, você é o que gera o resultado.

Não é um problema ter metas ou objetivos, o problema é essa meta ser algo que atropela.

As pessoas estão sobrecarregadas com obrigações que nem eram desejo delas, que não são essenciais para a vida, para o trabalho, mas que foram demandas criadas por esse culto do "tem que render mais". Uma visão de que só se cumprir essas metas a pessoa terá valor pessoal e profissional. Isso adoece demais as pessoas. Muito mesmo.

FC Brasil – Como não se perder nas metas e nas "medalhas de ouro" da vida?

Aline Wolff – É um mergulho para dentro, autoconhecimento. É um trabalho constante. Sempre digo a meus pacientes e atletas que não dá para soltar a própria mão, que a gente se perde.

Você não é o seu resultado, você é o que gera o resultado. Isso não é só uma frase bonita de efeito, é um processo de realmente saber quem você é. De abraçar o seu valor.

É fácil confundir os papéis, os resultados profissionais. No mundo fora dos campos, executivos passam a vida achando que são o papel que exercem na empresa. Quando se aposentam, não sabem mais quem são. Entram em crise.

FC Brasil – O que chama atenção na Rebeca é o quanto ela fica tranquila antes das competições. Qual o segredo? 

Aline Wolff – A Rebeca não assumiu a obrigação e a expectativa dos outros. A expectativa é muito presente na vida dela. Sendo uma pessoa talentosa, tem uma legião de pessoas, treinadores, fãs, que colocam muitas pressões e esperam bastante dela.

Crédito: Gaspar Nóbrega/ COB

É libertador quando a gente entende que não precisa atender as expectativas dos outros e não precisa se conectar com as expectativas dos outros. Ela se compromete com ela mesma, não solta a mão de si mesmo. Porque se a gente for viver a vida para atender a expectativa de todos, não vivemos a nossa vida.

FC Brasil – Você cita bastante a segurança psicológica. Como alguém seguro psicologicamente age? 

Aline Wolff – Uma pessoa segura psicologicamente tem mais facilidade de colocar limites. É difícil de colocar em palavras. Como se essa segurança viesse de algo que está no olhar da pessoa, no corpo dela. Muita gente olha para a Rebeca e sente esse encanto. Ela tem isso. 

É libertador quando a gente entende que não precisa atender as expectativas dos outros.

Na empresa, quem está seguro psicologicamente vai conseguir discordar de um ponto da liderança, vai conseguir colocar o seu ponto de vista com tranquilidade, porque ela tem outras prioridades. É um colaborador que fala : "isso não consigo, preciso buscar minha filha na escola".

Dá sinais de que a pessoa está conectada com as suas prioridades, em contato consigo mesma. Não significa que ela não vai estar totalmente comprometida com as entregas, mas está fazendo ao mesmo tempo em que está conectada com suas próprias prioridades.

FC Brasil – De que forma as lideranças e as empresas podem criar um ambiente para que colaboradores se tornem pessoas mais seguras?

Aline Wolff – A liderança precisa trabalhar com os indivíduos. Tudo passa pelo líder, em todas as camadas de liderança precisa ter desenvolvimento global.

Quando se fala em saúde mental e em cultura "humanizada" de performance, muitos confundem e acham que significa que vai tornar o trabalho muito suave, sem metas ou sem pressão. Não tem nada a ver com isso. Tem a ver com o jeito de propiciar a eficiência e entender quais resultados são possíveis e sustentáveis.

Isso passa por dar condições reais para as pessoas se auto conhecerem. Dar intervalos para processos terapêuticos, ter redes de profissionais para indicar. E com trabalhos de qualidade. Não são coisas resolvidas em 10 sessões ou em duas palestras por ano. 

FC Brasil – As companhias têm áreas de recursos humanos. Você imagina uma companhia com uma área voltada para saúde mental dos colaboradores?

Aline Wolff – Eu trabalho no COB em uma área focada apenas para a saúde mental de atletas. Atendo vários atletas e fico pensando: será que as empresas têm profissionais para isso? Será que elas pensam em dar esse caminho?

O mais importante é facilitar o processo e desenvolver ambientes confortáveis para que esse seja um assunto falado. 

Seleção de ginástica artística feminina e comissão técnica na Olimpíada de Paris (Crédito: Marina Ziehe/ COB)

A melhor forma de olhar com cuidado para a saúde mental é a detecção atenta. Temos redes de profissionais no COB, psiquiatria, psicólogos. Conseguimos detectar mais rapidamente se um atleta está próximo de chegar a um burnout. Isso ajuda a recuperação mais rápida.

Quando a pessoa está em exaustão profunda, acha que o sofrimento é normal. Ela questiona os seus propósitos. Se o olhar das organizações for mais ativo, tem menor chance de as pessoas adoecerem. Arrisco dizer que isso ainda não é a realidade das empresas no país. 

FC Brasil – Para além da estrutura e de apontar profissionais de saúde mental, o que mais um líder precisa ter para, de fato, criar a mente "de ouro" dos colaboradores?

Aline Wolff – O diferencial será sempre a empatia. Essa é uma palavra que está sendo repetida bastante, mas as pessoas não sabem o que é empatia de verdade.

Não é um problema ter metas, o problema é essa meta ser algo que atropela.

As lideranças precisam ser treinadas em empatia, precisa compreender e viver a empatia, precisa ver e entender como é a experiência do outro.

Empatia é mais complexo do que se colocar no lugar do outro, é estar conectado com o outro. Não é algo que se aprende lendo frases ou vendo palestras, mas vivendo na prática. De fato, conversando e lidando com pessoas. É algo muito difícil de levar adiante.

FC Brasil – O ciclo olímpico é duro para todos os profissionais que atuam com os atletas. Como você fez para equilibrar esse estresse?

Aline Wolff – Tenho dois filhos [Vicente, de 7 anos, e Matias, de 3] e eles vieram para Paris. Minha família veio. Fiquei na dupla função, mas está sendo muito bom. Se não cuidasse do que me faz bem, seria incongruente com todo o meu trabalho.

FC Brasil – O país se emocionou com Rebeca Andrade nas Olimpíadas. Você estava lá a trabalho, rolou um momento de se emocionar?

Aline Wolff – Como não chorar em um momento desses? A felicidade, a emoção. É difícil colocar em palavras. Ver a Rebeca feliz e brilhante foi muito lindo, uma sensação indescritível.  É muito lindo saber que ela está feliz, que ela está realizada.

FC Brasil – Ainda mais com aquele momento icônico do pódio, com a Simone Biles e a Jordan Chiles fazendo reverência para a atleta brasileira.

Aline Wolff – A mídia adora a história da rivalidade, isso toca o espírito competitivo do brasileiro. Mas não é a realidade. O que a gente vê na ginástica é muito mais apoio e amizade.

As atletas norte-americanas Simone Biles e Jordan Chiles homenageiam a brasileira Rebeca Andrade (Crédito: COI/ Getty Images)

Foi emocionante ver a Simone brilhar também nessas Olimpíadas. E foi ainda mais emocionante presenciar a Simone reconhecer a Rebeca, naquele pódio incrível, com o simbolismo ainda de serem todas mulheres negras. É uma alegria para quem estava lá, e que se espalhe como uma mensagem positiva para todos.

FC Brasil – Você virou tema de postagens e memes. Muita gente falando que "quer a psicóloga da Rebeca". Como está lidando com essa fama?

Aline Wolff – O meu nome deu uma viralizada de um jeito que eu nem sei o que farei quando chegar no Brasil. Sabia que podia acontecer. Quero encarar isso como uma oportunidade de contribuir para a conversa sobre autoconhecimento. Fazer com que a reflexão sobre a saúde mental e a terapia chegue em mais e mais pessoas.

    Se puder de alguma forma tocar o coração das pessoas, ajudar no autodesenvolvimento de outras pessoas, ficarei feliz. Se duas pessoas falarem que procuraram fazer terapia depois de ver a Rebeca falando de saúde mental, já fico muito satisfeita e sei que fiz bem o meu trabalho. Precisamos multiplicar essa ideia.


    SOBRE A AUTORA

    Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais