O futuro das fábricas de automóveis tem duas rodas

Crédito: Fast Company Brasil

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Mercedes-Benz, Tesla, Lamborghini, Ferrari, Land Rover, Porsche, BMW, Audi, Jeep, Ford, Volvo, Volks e Honda estão em guerra por um mercado gigantesco: bicicletas tradicionais, e-bikes e scooters.

Num movimento típico de uma sociedade ancorada no futuro sustentável, financiada pelos investimentos ESG e alinhada com a era dos stakeholders e das “smart cities”, as montadoras estão ouvindo como nunca os millennials e sobretudo a geração Z, ao investir pesado em micromobilidade a fim de se anteciparem e buscarem alternativas ao impacto econômico do fenômeno “peak car” (saturação máxima de automóveis) —  que continua puxando para baixo a economia global na última década.

O setor automotivo representou 20% da desaceleração do PIB em 2018 e cerca de 30% da desaceleração do comércio global, de acordo com a última pesquisa do FMI apresentada em outubro de 2019 (World Economic Outlook). 

Montadoras investem em micromobilidade (Crédito: Lamborghini / divulgação)

A saturação de carros na China, Índia e Brasil se aproxima e também representa um problema, já que as populações em mercados desenvolvidos como EUA e Europa já passaram dos anos mais populares de compra de carros, de acordo com o The Wall Street Journal.

Os novos consumidores estão exigindo alternativas mais personalizadas e sustentáveis, não poluentes, migrando para marcas transformadoras para o planeta e curtindo soluções co-criadas. 

É uma era de mudança de paradigmas, não apenas mudanças de preferências, onde há muito mais espaço para imaginação e atitude. Em todos os países, a bicicleta evoca as mesmas imagens e valores de liberdade, saúde e alto astral. Setenta e três por cento dos europeus, por exemplo,  acham que as bicicletas devem receber tratamento preferencial nas ruas comparado com carros.

Nesse contexto, o potencial da micromobilidade é gigantesco: quase metade de todas as viagens de carro nos Estados Unidos, por exemplo, são feitas em menos de cinco quilômetros, segundo dados recentes do Departamento de Transporte dos EUA. 

Cidadãos parisienses são incentivados a andar de bicicleta com a reformulação do planejamento urbano (Crédito: Delpixart / iStock)

Ao não utilizar transporte público ou carro, você não está só limitando sua pegada de carbono, mas contribuindo para a sua saúde e a de sua cidade, reduzindo a poluição sonora e de CO2 e economizando seu dinheiro e o dos impostos. 

E não só as gigantes dos automóveis estão investindo no que a consultoria internacional Deloitte afirma ser o futuro do transporte urbano: fabricantes artesanais e locais estão surfando nessa tendência global que dobrará seu tamanho até 2028:  o mercado global apenas de bicicletas convencionais foi estimado em US$ 54,44 bilhões em 2020 e vai dobrar até 2028, quando estima-se que alcançará o patamar de US$ 100 bilhões. O segmento de bikes elétricas atingirá o patamar de US$ 50 bilhões em apenas quatro anos. 

O mercado global de bicicletas convencionais foi estimado em US$ 54,44 bilhões em 2020 e vai dobrar até 2028, quando estima-se que alcançará o patamar de US$ 100 bilhões.

O ADEUS AOS CARROS 

A ideia de ter um veículo à combustão ou mesmo híbrido é símbolo do que não haverá mais no futuro próximo. Os países europeus definiram o ano de 2035 para o fim de carros particulares a gasolina, diesel, gás e híbridos e criou um fundo de 72 € bilhões para compensar o aumento dos preços da energia.

O designer Kendall Toerner lança protótipo de E-Bike modelo B (Crédito: Tesla / divulgação)

Serviços de compartilhamento de viagens, opções de compartilhamento de carros e soluções de micromobilidade (perímetro médio de 5km ou 15 minutos) como bicicletas tradicionais, bicicletas elétricas e scooters com adaptações para todas as idades estão substituindo veículos pessoais em áreas densamente povoadas, segundo o FMI. 

Um relatório da Bloomberg indica que trocar carros por bicicletas reduziria as emissões de carbono em 67%. Mesmo se apenas uma pequena porcentagem dos cidadãos escolhesse duas rodas em vez de quatro, as emissões cairiam significativamente.

E mais: o adeus aos carros alterará a fisionomia das cidades, que serão, enfim, para os cidadãos. 

Um exemplo prático dessa mudança são cidades como Madrid, Paris e Lisboa, que avançam com rapidez na implementação prática dos conceito de “smart cities” e onde há quase uma década o conceito de “cidade de 15 minutos” tem sido priorizado no planejamento urbano.

No lugar de carros, a capital parisiense quer bicicletas e arte. 

 Modelo de “smart city” projetado para reconstruir a Avenida Champs-Élysées em Paris (Crédito: Delpixart / iStock)

Estacionamentos em ruas estreitas e residenciais foram os primeiros a ser eliminados. Moradores e trabalhadores da região têm prioridade nos espaços que restarem. Um deles, o mais vistoso, é quase uma reconstrução da famosa Avenida Champs-Élysées. Outro caso é a transformação de  74 mil vagas de estacionamento a céu aberto em áreas verdes.

A administração de Paris se apressa para garantir que tudo o que os moradores e turistas precisarem não esteja a mais de 15 minutos de distância já nas Olimpíadas de 2024.

Paris aposta nas duas rodas como a chave da futura mobilidade urbana. Centenas de quilômetros de vias exclusivas foram construídas, e o número de ciclistas aumentou 62% em dois anos. A consequência imediata é que o número de parisienses que possui carro está caindo: 34%, quando há 10 anos o percentual era de 41%.

INOVAÇÃO E TECNOLOGIA INCLUSIVA 

Talvez o mais fascinante de todo esse processo de reinvenção da indústria automobilística é que ela deu seus primeiros passos em 1817 com a bicicleta pioneira do barão alemão Karl von Drais.

Ele a batizou de “máquina corredora” (laufmaschine em alemão) e a imprensa a chamou de Draisiana ou velocípede. Era feita de madeira e funcionava com o impulso dos pés. O objetivo de Von Drais era oferecer um meio de transporte mais barato e fácil de manter que os cavalos. O invento ganhou certa notoriedade, a ponto do poeta John Keats tê-lo chamado de “o nada do momento”, segundo o The New York Times.

Uma draisiana da década de 1820, primeiro veículo disposto de roda em linha com tração humana (Crédito: Getty Images) 

Em 1839, Kirkpatrick MacMillan, um escocês , construiu a primeira bicicleta com pedais, e em 1860, na França, uma bicicleta muito parecida com as atuais foi fabricada por Pierre Michaux —  que em 1865 montou a primeira fábrica de bicicletas do mundo, a Biciclos Michaux. 

A invenção impulsionou a indústria da bicicleta pela sua eficácia e versatilidade e encantou os ricos da época. Mas foi em 1884 que os alemães Karl Benz, Gottlieb Daimler  e o engenheiro de motores Wilhelm Maybach desenvolveram a primeira bicicleta motorizada. O primeiro automóvel, inclusive, foi feito por Benz, nos fundos de sua casa.

A bicicleta fabricada por MacMillan em 1839 (Crédito: Getty Images / Science & Society Picture Library) 

Já Daimler fez o que se chamaria de segundo automóvel, sobre carruagem com dois bancos para duas pessoas, a da frente dirigindo e a de trás cuidando de motor, transmissão e velocidade. 

Hoje, 137 anos depois, a Mercedes Benz é uma das líderes da revolução das bicicletas e e-bikes.

Bicicleta elétrica EQ Formula E Team da Mercedes-Benz (Crédito: Mercedes-Benz / divulgação)

No Brasil, as primeiras bicicletas chegaram entre 1850 e 1870 na capital do Império, Rio de Janeiro. Imigrantes de origem alemã, italiana e suíça, que começaram a chegar no Sul do Brasil a partir de 1850, também podem ter trazido algumas magrelas. Em 1896, São Paulo ganhou o primeiro velódromo da América do Sul.

No entanto, para a estratégia de micromobilidade e a malha cicloviária se viabilizar no Brasil, é preciso que a instalação de ciclovias seja tratada como prioridade pelo Poder Público. 

O Programa Bicicleta Brasil, instituído pela Lei 13.724/2018 de 2017, prevê, entre outras coisas, aumentar a construção de ciclovias e marcação de ciclofaixas e faixas compartilhadas, mas notadamente ainda não decolou. 

O Brasil tem uma malha cicloviária de pouco mais de 3.000 km, o que inviabiliza qualquer projeto de micromobilidade e ciclovias no curto e médio prazos — embora mais de 70 milhões de ciclistas pedalem pelo país, mesmo que em condições desfavoráveis e sem segurança.

Faltam ciclovias, sinalização e a cultura de respeito aos ciclistas. Só nos últimos 10 anos, mais de 13 mil ciclistas morreram por acidente no trânsito. Destes, 60% foram atropelados. É fundamental a articulação de políticas, programas, iniciativas e investimentos públicos que permitam às cidades navegarem neste mundo em transformação de forma inclusiva, protegendo também as parcelas mais vulneráveis da população

Apesar de tudo, o número de pessoas que aderem à bicicleta como meio de transporte continua a crescer. Em 2020, a venda de bicicletas registrou um aumento de 50% em comparação a 2019 e o de e-bikes teve um percentual de crescimento ainda maior.

Essas inovações trazem a visão de um futuro com menos carros, maior valorização da saúde preventiva e do bem-estar, trânsito mais seguro, maior qualidade e expectativa de vida, consumo de energia mais consciente, eficiente e barato e custos de bicicletas e peças mais acessíveis. E a perspectiva de deixar um legado de cidades focadas nos cidadãos, com equipamentos urbanos interconectados para gerar eficiência, serviços disruptivos de transporte e inteligência em rede a serviço da inclusão e da equidade. E quem sabe, finalmente a tecnologia de última geração em benefício de todos.


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