Pessoas têm passaportes. Edifícios também deveriam ter

Arquitetos estão explorando como os “passaportes de materiais” podem encorajar a reciclagem de edificações

Créditos: Istock

Elissaveta M. Brandon 5 minutos de leitura

Nossos documentos – carteira de identidade, passaporte, carteira de motorista e tantos outros – contém informações essenciais sobre nós. Eles nos dão acesso a direitos básicos como saúde e voto e nos permitem, inclusive, cruzar fronteiras livremente. Mas um número cada vez maior de arquitetos acredita que os seres humanos não são os únicos que precisam de um documento de identificação – os edifícios também precisam. 

Esse conceito, conhecido como “passaporte de materiais”, garante que, quando uma edificação chega ao fim de sua vida útil, os arquitetos possam consultar seu documento de identificação e verificar de que materiais e componentes ela é feita, para então reutilizá-los, em vez de consumir novos recursos.

Embora esta ainda seja uma ideia nova no campo da arquitetura, o conceito é aplicável a qualquer objeto físico, seja um arranha-céu ou um vestido. Todo material é um recurso, e eles devem ser reutilizados sempre que possível.

Crédito: Orms/ Divulgação

Os passaportes de materiais são tema de uma exposição sobre economia circular, em Londres. Desenvolvido pelo Royal Institute of British Architects, o Long Life, Low Energy: Designing for a Circular Economy (Vida Longa, Baixo Consumo de Energia: Projetando para uma Economia Circular) explora várias ferramentas que os arquitetos podem usar para reduzir a pegada de carbono incorporada de seus edifícios, incluindo estruturas desmontáveis e reutilização adaptativa.

Uma dessas ferramentas são os passaportes para edifícios, uma espécie de banco de dados dos materiais utilizados. “Escolhemos destacar os passaportes de materiais porque oferecem uma excelente oportunidade para aumentar a reutilização arquitetônica”, explica Pete Collard, curador da exposição.

UM PASSO NA DIREÇÃO CERTA

Materiais reutilizados têm muito potencial, mas ainda não temos dados suficientes para explorá-lo de forma consistente. É aqui que entra o passaporte de material. Pense nele como um inventário detalhado que lista todos os componentes de um edifício.

Por exemplo, se um determinado prédio tivesse um passaporte como este, seria possível saber quantas toneladas de aço foram usadas para construí-lo, o tipo de telha do telhado, quantas janelas tem (incluindo o tamanho), se são individuais e se são de vidro duplo ou triplo.

Não podemos continuar construindo do jeito que fazemos hoje; não há material suficiente e o planeta não consegue suportar essa quantidade de emissões de carbono.

Com essas informações em mãos, o arquiteto saberá quais materiais estão disponíveis e poderá reutilizá-los na reforma, além de poder separar aqueles que não são compatíveis para outro projeto.

Reunir e registrar todas essas informações certamente não é uma tarefa fácil, mas para a indústria de arquitetura e construção, que é responsável por quase 40% das emissões globais de CO2, é um passo importante na direção certa.

“Não podemos continuar construindo do jeito que fazemos hoje; não há material suficiente e o planeta não consegue suportar essa quantidade de emissões de carbono”, argumenta Rachel Hoolahan, arquiteta e coordenadora de sustentabilidade do escritório de arquitetura Orms, que pesquisa passaportes de materiais há três anos.

Rachel enfrentou esse mesmo dilema em 2019, quando a Orms ficou encarregada de converter três residências no centro de Londres em escritórios. Após uma análise detalhada, os arquitetos concluíram que os edifícios, cujos pisos não estavam alinhados, deveriam ser demolidos e reconstruídos. mas queriam reutilizar o máximo possível de seus componentes.

Crédito: Orms/ Divulgação

Para fazer isso de forma eficaz, eles precisavam de um inventário de todo o material do prédio, o que simplesmente não existia. No fim das contas, o orçamento diminuiu e os prédios nunca foram demolidos, mas o projeto se tornou a base para uma pesquisa contínua sobre como acelerar o reaproveitamento de materiais em larga escala.

USO GRATUITO

O arquiteto holandês Thomas Rau originalmente propôs a ideia de passaportes de materiais em um livro chamado “Material Matters” (Questões sobre Materiais). Ele é adepto da filosofia de que “resíduos são materiais sem identidade”.

Em 2017, cofundou a Madaster, uma plataforma comercial que gera passaportes de materiais com base em um software de modelagem 3D altamente detalhado, conhecido como modelo BIM. Mas, até o momento, ela está disponível apenas em alguns países da Europa

No entanto, de acordo com Rachel, esse conceito ainda não atingiu todo o seu potencial porque só pode ser usado para projetar novos edifícios, em vez de modernizar os que já existem.

Assim, a Orms decidiu criar sua própria versão do passaporte de material. Essa nova abordagem se baseia em um modelo simples, gratuito e disponível para qualquer pessoa interessada em experimentá-lo.

Crédito: Orms/ Divulgação

Como prática, os passaportes de materiais provavelmente ganharão espaço de forma lenta e orgânica, à medida que mais arquitetos e construtores decidirem adotá-los.

Trata-se ainda de um projeto em andamento, mas a ideia está começando a ser adotada pelo setor de construção. A cada trimestre, Hoolahan reúne cerca de 60 profissionais que estão trabalhando com esse conceito de alguma forma – de arquitetos e engenheiros a clientes, inspetores e autoridades locais em toda a Europa e nos EUA. “Alguns estão fazendo pesquisas, outros estão testando e integrando [passaportes de materiais ] em seus processos”, diz ela.

Embora seja preciso esperar talvez por mais uma década até que possamos ver os resultados, se os passaportes de materiais forem adotados em larga escala, podem ajudar a fazer engenharia reversa de como construímos, com foco em materiais recicláveis e edifícios desmontáveis que não dependem de técnicas de construção irreversíveis, como argamassa ou cimento.

“Estamos responsabilizando as pessoas pelo que acontece quando a construção é concluída, buscando avançar rumo à economia circular”, diz Rachel. “O que fazer se todos os aterros forem fechados? Como trabalhar com o que temos?”


SOBRE A AUTORA

Elissaveta Brandon é colaboradora da Fast Company. saiba mais