Por que Bill Gates está redondamente enganado na questão da mudança climática

Depois de passar duas décadas se apresentando como especialista em clima, Gates agora traz argumentos frágeis, mas acredita poder dar lições ao mundo

crítica à posição de Bill Gates sobre mudança climática
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Adele Peters 5 minutos de leitura

Bill Gates investiu bilhões nos últimos 20 anos para ajudar a combater a crise climática. Mas, em um novo texto publicado em seu blog, ele afirma que o mundo está obcecado demais em reduzir emissões no curto prazo.

“Essa visão apocalíptica está levando boa parte da comunidade climática a se concentrar excessivamente em metas de curto prazo”, escreve ele, defendendo uma “mudança de foco” para “melhorar vidas” – priorizando investimentos em agricultura, saúde e erradicação da pobreza.

O problema é que esse raciocínio parte de um falso dilema e ignora o quanto os objetivos de desenvolvimento e as metas climáticas estão interligados. Gates critica o que chama de visão “do fim do mundo” – a ideia de que as mudanças climáticas “vão dizimar a civilização” nas próximas décadas – e afirma que “elas não levarão à extinção da humanidade”.

A partir disso, e com base no progresso que acredita já ter sido feito, Gates argumenta que o foco deveria estar em reduzir o sofrimento humano, em vez de se preocupar tanto com o aumento das temperaturas.

Mas os cientistas do clima não dizem que a civilização vai acabar. O que eles afirmam é que os furacões, as ondas de calor e outros desastres climáticos já estão matando pessoas, destruindo casas, dificultando a produção de alimentos e tornando a vida mais cara em todo o planeta sob diversos aspectos.

Quanto mais demorarmos para reduzir as emissões, piores serão os impactos e mais difícil será nos adaptar. O sofrimento humano está diretamente ligado ao que fazemos agora.

“O texto de Gates cria uma falsa dicotomia entre melhorar a vida das pessoas e alcançar  metas de temperatura e emissões baseadas na ciência – que, na verdade, estão totalmente conectadas”, afirma Rachel Cleetus, diretora de políticas climáticas e energéticas da Union of Concerned Scientists.

“Basta olhar ao redor: as mudanças climáticas estão prejudicando diretamente o desenvolvimento humano, o combate à pobreza e os avanços na saúde. O furacão Melissa [que causou destruição na Jamaica e em Cuba, na semana passada], intensificado pelo aquecimento global, é um exemplo claro disso.”

METAS CLIMÁTICAS x COMBATE À POBREZA

Um relatório da revista médica “The Lancet” reforça essa visão, apontando que os impactos da crise climática representam “uma ameaça sem precedentes” à saúde e à sobrevivência das pessoas em todo o planeta.

Com temperaturas mais altas e mais chuvas, mosquitos passam a se reproduzir em novas regiões, aumentando o risco de doenças como a malária. “Tudo está interligado”, observa Cleetus. “Não dá para resolver problemas complexos de saúde e desenvolvimento ignorando as mudanças climáticas.”

Gates também argumenta que as metas de temperatura estariam atrapalhando o combate à pobreza. Mas o objetivo mais ambicioso do Acordo de Paris – limitar o aquecimento global a 1,5°C – foi proposto justamente pelos países insulares mais pobres, que serão os primeiros a sofrer com a elevação do nível do mar.

se o objetivo é proteger vidas e meios de subsistência, reduzir emissões é algo que precisa ser feito agora.

“É de uma audácia enorme Bill Gates, um bilionário, dizer que ‘as pessoas que trabalham com clima não se importam com os pobres e com o mundo em desenvolvimento’, quando, na verdade, o próprio conceito de estabilização da temperatura veio desses países”, comenta Leah Stokes, professora de ciência política da Universidade da Califórnia, nos EUA.

Definir uma meta de temperatura foi fundamental. A partir dela, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas mostrou quanto as emissões precisariam cair até 2030 para limitar o aquecimento a 1,5°C. “É um horizonte de tempo que os formuladores de políticas conseguem entender e planejar”, aponta Stokes.

Gates também defende que as comunidades podem se adaptar aos impactos climáticos de curto prazo e que o crescimento econômico ajudará a evitar mais mortes – se mais pessoas puderem comprar ar-condicionado, por exemplo, isso salvaria vidas.

Planeta Terra em ampulheta Conceito de aquecimento global
Crédito: Freepik

Mas esse argumento ignora os limites do crescimento e da resiliência econômica diante de desastres cada vez mais frequentes. “Não há como as economias se desenvolverem sendo atingidas repetidamente por catástrofes provocadas pela crise climática”, alerta Cleetus.

O ensaio também sugere que o crescimento econômico nos países em desenvolvimento está em conflito com a política climática. "Não há uma única pessoa no mundo que esteja defendendo esse argumento", diz Shah. "Nenhum dos países pobres jamais foi obrigado a reduzir suas emissões."

Ao mesmo tempo, como as energias renováveis ​​se tornaram a fonte de eletricidade mais barata, os países em desenvolvimento podem expandir o acesso à energia de forma acessível, sem aumentar drasticamente as emissões.

O Paquistão, por exemplo, importou a terceira maior quantidade de painéis solares do mundo em 2024. "Toda a revolução solar dos últimos três anos no Paquistão foi feita com capital do setor privado e vídeos de 'faça você mesmo' no WhatsApp", diz Shah.

REAÇÕES IRREVERSÍVEIS

Gates ainda sugere que podemos esperar um pouco mais para reduzir emissões, já que novas tecnologias – muitas financiadas por seus próprios investimentos – estariam a caminho. Mas, como o aquecimento global é um problema cumulativo, adiar a ação por mais uma década poderia nos levar a pontos de não retorno.

E é justamente aí que está a maior contradição em seu argumento: se o objetivo é proteger vidas e meios de subsistência, reduzir emissões é algo que precisa ser feito agora.

Não dá para resolver problemas complexos de saúde e desenvolvimento ignorando as mudanças climáticas.

“A ciência mostra que, se não reduzirmos drasticamente as emissões de gases de efeito estufa na próxima década, há um risco real de não alcançarmos as metas climáticas globais”, afirma Cleetus. “Isso pode provocar reações em cadeia que não poderão ser revertidas, mesmo que as emissões sejam reduzidas depois.”

Gates encerra pedindo aos líderes que estarão na COP30, a conferência do clima deste ano, que “priorizem ações com maior impacto no bem-estar humano”, em vez de focar na redução de emissões. É improvável, porém, que suas ideias mudem o rumo das discussões no evento. Mas a mensagem, por si só, já é prejudicial para a ação climática global.

“O impacto é mais psicológico”, conclui Stokes. “Reforça a ideia de que as mudanças climáticas não são algo com que devamos realmente nos preocupar.”


SOBRE A AUTORA

Adele Peters é redatora da Fast Company. Ela se concentra em fazer reportagens para solucionar alguns dos maiores problemas do mundo, ... saiba mais