Quem são os verdadeiros criminosos no novo filme de Martin Scorsese?
Durante décadas, o governo dos EUA roubou terras e riquezas da nação Osage
O novo filme de Martin Scorsese, “Assassinos da Lua das Flores” conta a história real de uma série de assassinatos ocorridos no território da nação indígena Osage, em Oklahoma, na década de 1920.
Baseado em um livro de 2017 de David Grann que foi escrito a partir de pesquisas minuciosas, o longa se aprofunda na dinâmica racial e familiar que abalou o estado quando descobriram petróleo nas terras dos Osage.
Os colonos brancos tinham como alvo os membros da nação Osage, para roubar suas terras e as riquezas que estavam sob elas. Mas, em uma perspectiva histórica, esse crime é apenas a ponta do iceberg.
Do início do século 19 até a década de 1930, a política oficial dos EUA foi de expulsar milhares de nativos de seus lares ancestrais por meio de uma política conhecida como remoção indígena.
No início do século 19, as terras nativas do oeste eram um alvo atraente, mas a expansão esbarrava naquilo que ficaria conhecido como “o problema dos índios”.
Ao longo do século 20, o governo federal arrecadou bilhões de dólares com a venda ou arrendamento de recursos naturais das terras indígenas – como madeira, petróleo e gás –, que deveriam ser distribuídos aos proprietários. Mas, durante décadas, o governo não prestou contas desses fundos fiduciários, muito menos pagou aos proprietários o que lhes era devido.
Sou gerente do Programa de Governança Indígena da Universidade do Arizona e professor de direito. Minha ascendência é Comanche, Kiowa e Cherokee por parte de pai e Taos Pueblo por parte de mãe.
Do meu ponto de vista, “Assassinos da Lua das Flores” representa apenas um capítulo de uma história muito maior: os EUA foram construídos a partir de terras e riquezas roubadas.
EXPANSÃO PARA O OESTE E ROUBO DE TERRAS
Na narrativa convencional, o oeste norte-americano foi povoado por colonos empreendedores que tiraram seu sustento do solo, formaram cidades e, com o passar do tempo, criaram estados. Na verdade, centenas de nações nativas já habitavam essas terras, cada uma com suas próprias formas de governo, cultura e idioma.
No início do século 19, as cidades do leste dos Estados Unidos estavam crescendo e os centros urbanos mais densos estavam ficando difíceis de administrar. As terras nativas do oeste eram um alvo atraente, mas a expansão esbarrava naquilo que ficaria conhecido como “o problema dos índios”.
Essa expressão amplamente utilizada refletia a crença de que os EUA tinham uma espécie de missão designada por Deus para colonizar a América do Norte, só que os “índios” estavam no caminho.
A partir da década de 1830, o Congresso pressionou as tribos nativas do leste a assinar tratados que exigiam que se mudassem para reservas no oeste. Essa remoção forçada atingiu todas as tribos a leste do rio Mississippi e várias a oeste dele. No total, cerca de 100 mil indígenas foram removidos de suas terras natais para reservas no oeste.
Mas a mais nefasta das apropriações de terras ainda estava por vir.
A LEI GERAL DE LOTEAMENTO
Mesmo depois que os indígenas foram encurralados em reservas, os colonos continuaram pressionando por mais acesso às terras. Em 1871, o Congresso encerrou formalmente a política de estabelecer tratados com os povos indígenas.
Em 1887, foi aprovada a Lei Geral de Loteamento (General Allotment Act), também conhecida como Lei Dawes. Com essa lei, a política dos EUA em relação aos nativos deixou de ser de separação e passou a ser de assimilação – ou seja, de integrá-los à força à população nacional.
Isso exigiu a transição das estruturas tribais de propriedade comunal de terras, sob um sistema de reservas, para um modelo de propriedade privada que acabou com as reservas.
A Lei Geral de Loteamento foi criada para dividir as terras das reservas em lotes individuais e abrir todas as terras não loteadas, que eram consideradas excedentes, para assentamento de “não índios”. Elas só podiam ser distribuídas a chefes de família do sexo masculino.
De acordo com o estatuto original, o governo dos EUA mantinha os lotes indígenas, que mediam aproximadamente 65 hectares por pessoa, em confiança durante 25 anos antes que cada loteador pudesse receber o título de propriedade. Durante esse período, esperava-se que os indígenas alocados adotassem a agricultura, se convertessem ao cristianismo e assumissem a cidadania norte-americana.
Em 1906, o Congresso alterou a lei para permitir que o secretário do interior emitisse títulos de terra sempre que um indígena alocado fosse considerado capaz de administrar seus negócios. Quando isso acontecia, o loteamento ficava sujeito à tributação e podia ser vendido imediatamente.
No total, o loteamento removeu 36 milhões de hectares de terra do controle indígena até que essa política fosse encerrada, em meados da década de 1930.
Isso levou à destruição da cultura indígena e à perda de idiomas, à medida que o governo federal implementava sua política de escolas em regime de internato, e à imposição de uma infinidade de regulamentações, conforme mostrado em “Assassinos da Lua das Flores”, que afetavam as disputas por herança, propriedade e título quando um loteador morria.
UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Atualmente, cerca de 22,6 milhões de hectares permanecem sob controle indígena. O governo federal detém o título dessas terras, mas as conserva em confiança para as comunidades ou indivíduos indígenas.
esperava-se que os indígenas adotassem a agricultura, se convertessem ao cristianismo e assumissem a cidadania norte-americana.
Essas terras contêm diversos recursos valiosos, incluindo petróleo, gás, madeira e minerais. Mas, em vez de agir como gestor dos interesses indígenas ao lidar com esses recursos, o governo dos EUA tem falhado repetidamente em suas obrigações de custódia.
Conforme exigido pela Lei Geral de Loteamento, o dinheiro ganho com a exploração de petróleo e gás, mineração e outras atividades em terras loteadas foi colocado em contas individuais para o benefício dos indígenas donos dos lotes.
Porém, por mais de um século, em vez de fazer pagamentos aos legítimos proprietários das terras, o governo administrou mal esses fundos, não forneceu a prestação de contas exigida pelo tribunal e destruiu sistematicamente os registros de despesas.
Em 1996, Elouise Cobell, membro da nação Blackfeet, em Montana, entrou com uma ação coletiva para forçar o governo a fornecer uma contabilidade histórica desses fundos e consertar seu sistema falho de gerenciamento. Após 16 anos de litígio, a ação foi julgada em 2009 por cerca de US$ 3,4 bilhões.
QUEM SÃO OS VERDADEIROS LOBOS?
“Assassinos da Lua das Flores” oferece um retrato do roubo de terras dos indígenas norte-americanos, mas a história completa é muito maior.
Em uma cena do filme, Ernest Burkhart – um homem branco sem instrução, interpretado por Leonardo DiCaprio, que se casou com uma mulher Osage e participou dos assassinatos do povo nativo – lê com dificuldade um livro infantil.
“Há muitos, muitos lobos famintos”, ele lê. “Você consegue encontrar os lobos nesta imagem?” No filme, fica claro que os cidadãos da cidade são os lobos. Mas o maior de todos é o próprio governo federal. O problema é que o Tio Sam é bem mais difícil de enxergar.
Este artigo foi republicado do The Conversation sob licença Creative Commons. Leia o artigo original.