Reconstrução do RS deve ser também remodelagem do Brasil
Para proteger a população de eventos climáticos, serão necessários novos modelos de construção, infraestrutura e políticas públicas
Para proteger a população dos eventos climáticos cada vez mais recorrentes, serão necessários novos modelos de construção, infraestrutura e políticas públicas
Depois que a água baixar, a reconstrução precisará ser feita não apenas no Rio Grande do Sul, mas em todo Brasil. Cidades e Estados deverão ser remodelados para proteger a população dos eventos climáticos extremos cada vez mais recorrentes. E com urgência. Tais transformações passam pelo jeito de construir, morar, planejar e legislar, de acordo com especialistas.
De acordo com relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM), o Brasil teve 12 fenômenos extremos do clima em 2023. Foram cinco ondas de calor, três chuvas intensas, um ciclone extratropical, uma onda de frio e uma seca. "Os eventos extremos vão continuar acontecendo com frequência. O poder público precisará tornar a população muito mais resiliente ao clima”, afirma o climatologista Carlos Nobre, um dos cientistas mais renomados da atualidade.
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O nível de devastação dos extremos do clima foi sentido novamente este ano no Rio Grande do Sul. Com quase 90% dos municípios e mais de 1,5 milhões de pessoas afetadas pelas enchentes, o Estado ainda tenta calcular quanto tempo levará para se reerguer. O Governo do Rio Grande do Sul estima que serão necessários R$19 bilhões para executar as obras necessárias para responder aos desastres. Na maioria dos territórios, ainda há previsões de chuvas e fortes ventos para os próximos dias.
De acordo com Gabriel Savio, CEO da Sipremo, startup que tem um sistema de previsão meteorológica, a região Sul está mais suscetível a chuvas e tempestades nos próximos anos. O aquecimento da parte sul do Oceano Atlântico, que banha a região Sul e Sudeste do Brasil, tende a levar novas ocorrências de chuvas e secas para as regiões. Alguns especialistas projetam o aumento de ciclones extratropicais e até formação de furacões na área.
INFRAESTRUTURA VERDE
Mas isso não quer dizer que só por lá que os extremos irão castigar regiões do país. Nobre lembra de quanto o Norte está cada vez mais vulnerável a ondas de calor e secas. Como as cidades vão lidar com isso?
Parte da resposta está nos tipos de construções das cidades. Para Rodrigo Perpétuo, secretário-executivo do ICLEI América do Sul, principal associação mundial de cidades para desenvolvimento sustentável, a aposta a partir de agora terá que ser em construções de menor impacto ambiental, com soluções baseadas na natureza e alto grau de conectividade ecológica.
"Precisaremos orquestrar planos de investimentos e em larga escala em habitação e macrodrenagem, conjugados com uma ocupação diferente do espaço e uso do solo que permita elevar as cidades brasileiras e fazê-las absorver mais a água e as mudanças de temperatura", explica Perpétuo. Ele destaca ainda a importância de políticas de biodiversidade e de mais espaços verdes nos ambientes urbanos.
Crédito: Agência Brasil/Divulgação
As infraestruturas cinzas não têm mais lugar em um país adaptado às mudanças climáticas, afirma Rodrigo Corradi, secretário-adjunto do ICLEI. Corradi observa a tragédia do Rio Grande do Sul a partir de duas perspectivas: como especialista em urbanismo e como gaúcho. Para ele, a reconstrução do seu estado terá, obrigatoriamente, de ser verde e "baseada na natureza". "Não vamos resolver o problema com a infraestrutura de agora".
Opções de asfalto que absorvem água e de bioconcreto que emite menos CO2 são algumas das alternativas. Assim como projetos de habitação com madeira pré-fabricada e em áreas mais altas das cidades. E estradas que incentivem a conexão e não a divisão entre bairros. “Temos que fazer o Rio Grande do Sul virar um caso histórico de mudança de paradigma em relação ao enfrentamento da crise climática”, diz Perpétuo.
“Temos que fazer o RS virar um caso histórico de mudança de paradigma em relação ao enfrentamento da crise climática”
O pesquisador associado do Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS), Sérgio Margulis, lembra que poucas cidades no país estão preparadas para eventos climáticos “fora do comum", e não apenas do Rio Grande do Sul. “O que acontece se chover a quantidade que choveu no RS no Rio de Janeiro? A cidade está preparada para esses extremos? As favelas estão preparadas para esses extremos?”, questiona.
A desigualdade urbana e o baixo saneamento básico não são assuntos novos para o Brasil, mas tendem a ganhar contornos ainda mais problemáticos com a crise climática. Para os dois secretários executivos do ICLEI, é o momento de repensar e praticar um novo desenho urbano com mais áreas verdes e "caminháveis".
VOTAR COM A CRISE CLIMÁTICA "NO CORAÇÃO"
Na visão de Perpétuo, há oportunidades para transformações práticas no Brasil no que se refere à adaptação climática. Isso porque as maiores cidades do país passam por revisão de seus planos diretores, além da revisão de políticas nacionais que estão em curso.
“Estamos exatamente no momento em que o governo brasileiro atualiza o Plano Nacional de Defesa Civil, o Plano Nacional de Ação Climática e o de adaptação climática. Isso sem contar na renovação de ciclo dos prefeitos (por causa das eleições deste ano). O fenômeno do Rio Grande do Sul dá outros contornos a este processo”, afirma Perpétuo.
"Vamos deixar de eleger políticos negacionistas e votar em quem entende a urgência da crise climática"
Para o climatologista Carlos Nobre, um dos cientistas mais renomados da atualidade, é obrigação do brasileiro levar a preocupação com o clima para as urnas neste ano. Como Jane Fonda falou durante o South By Southwest há alguns meses, os cidadãos têm que votar com a causa climática no coração.
Nobre frisa a importância da mudança no corpo político, que esteja mais preparado tecnicamente para lidar com os extremos do clima. "Nas eleições de vereadores e prefeitos, por favor, vamos deixar de eleger políticos negacionistas e votar em políticos que entendam a urgência de buscar soluções e adaptação à mudança climática”.
Com mais pressão da sociedade, a tendência é que os candidatos se posicionem com planos eficientes para proteger a população e o meio ambiente.
Na visão de Rodrigo Corradi, o pleito de 2024 já se tornou as “eleições da pauta climática”. Os candidatos não poderão fugir do assunto até outubro. Até lá, o Rio Grande do Sul e o país ainda estarão sentindo os efeitos econômicos e sociais da enchente.
“Os passos que vamos dar nos próximos dois anos serão fundamentais para garantir o mínimo de qualidade de vida para todos para as décadas seguintes”, diz Corradi.