Rio da Amazônia pode conquistar direitos assegurados aos seres vivos

Município aprova lei inovadora que reconhece o rio Komi Memem e seus afluentes como entidades vivas com direitos

Crédito: André Penner/ AP Photo

Fabiano Maisonnave, Teresa de Miguel e André Penner 7 minutos de leitura

Às margens do rio Komi Memem, sempre há muito movimento de pessoas: mulheres descem a encosta da aldeia Laje Velho carregando bacias para lavar roupas, enquanto homens partem em pequenas canoas para expedições de caça e pesca. No fim do dia, as crianças mergulham em suas águas escuras.

O rio, conhecido como Laje em mapas não indígenas, é essencial para o Oro Waram, um dos seis subgrupos do povo Wari’, que habita a Amazônia Ocidental há séculos. No entanto, essa relação ancestral está cada vez mais ameaçada. A expansão da soja e de pastagens avança sobre suas terras, enquanto invasores promovem o desmatamento ilegal.

Aldeia Linha 26 próxima a área desmata em Nova Mamoré, Rondônia (Crédito: André Penner/ AP Photo)

Para se proteger, o povo Wari’ está recorrendo a uma nova estratégia: a lei do homem branco. Em junho, o município de Guajará-Mirim aprovou uma lei inovadora, proposta por um vereador indígena, que reconhece o rio Komi Memem e seus afluentes como entidades vivas com direitos, que vão desde a manutenção de seu fluxo natural até a proteção da floresta ao redor.

A aprovação da lei coincide com a reunião de representantes de oito governos sul-americanos no Brasil, realizada esta semana, para discutir maneiras de preservar a floresta amazônica, ajudar a combater as mudanças climáticas e proteger seus povos indígenas.

O Komi Memem é agora o primeiro entre centenas de rios na Amazônia brasileira a ter uma lei que lhe concede o status de pessoa. Esse entendimento faz parte de uma nova abordagem legislativa para proteger a natureza, que tem feito avanços em muitas partes do mundo, da Nova Zelândia ao Chile.

“Estamos nos organizando ainda mais para combater os invasores”, disse o vereador Francisco Oro Waram, proponente da lei. “Não podemos enfrentá-los com flechas; temos que usar as leis.”

Vereador Francisco Oro Waram (Crédito: André Penner/ AP Photo)

Também profissional da educação, Oro Waram vive com sua família na aldeia Laje Velho, a 40 minutos de carro do centro de Guajará-Mirim – a maior parte do trajeto é coberta por rodovia asfaltada e cercada por pasto.

Pouco antes da entrada da aldeia, maquinários pesados preparam o solo para o cultivo de soja, que está substituindo rapidamente a pecuária em toda essa parte da Amazônia, no estado de Rondônia.

A expansão do cultivo de soja, que depende de pesticidas, é uma grande ameaça ao rio.

“Muitas gerações novas virão, por isso os anciãos protegem a água”, explica Oro Waram. “Nós não a poluímos nem derrubamos as árvores ao redor. É um ser vivo para nós.”

Imagens de satélite mostram a terra indígena Igarapé Lage, um retângulo verde em meio ao desmatamento. É onde está localizada a aldeia Laje Velho. Nas últimas décadas, o governo federal criou seis terras indígenas não contínuas. Uma delas, Rio Negro Ocaia, aguarda aprovação para a ampliação das fronteiras estabelecidas por um estudo antropológico realizado há 15 anos.

Imagens mostram duas áreas protegidas que pertencem à comunidade Wari’: a do alto, tirada em julho de 2003 e a de baixo, com sinais de desmatamento, em 2023 (Crédito: Planet Labs PBC/ AP)

O povo Wari’ viveu de forma independente até o final dos anos 1950 e início dos anos 1960 e é o maior grupo de falantes da família linguística Chapakuran, uma língua isolada. Nos primeiros anos após o contato com estrangeiros, três em cada cinco indígenas da tribo morreram de doenças introduzidas, diminuindo sua população para apenas 400 habitantes.

Desde então, esse número aumentou 10 vezes. Mas agora eles ocupam menos de um terço de seu território original, de acordo com a antropóloga Beth Conklin, da Universidade Vanderbilt, que trabalha com os indígenas há quase quatro décadas.

O Komi Memem é o primeiro entre centenas de rios da Amazônia brasileira a ter uma lei que lhe concede o status de pessoa.

“Os Wari’ valorizam sua cosmologia e rituais. Tudo gira em torno de promover a prosperidade em relações com não-humanos, com o mundo maior e com o bem-estar do seu povo”, explica Conklin. “Portanto, essa lei é uma atualização para o século 21 desses valores sociais, biológicos e ecológicos tradicionais que estão no centro da cultura Wari’.”

A expansão do cultivo de soja, que depende fortemente de pesticidas, representa uma grande ameaça ao rio Komi Memem. Mas não é a única. Na montante de Laje Velho, invasores bloquearam o acesso do povo indígena a seus tradicionais locais de pesca.

Além disso, as nascentes do rio estão localizadas perto do Parque Estadual de Guajará-Mirim, um antigo território Wari’. Apesar de ser uma área protegida, foi amplamente invadida e desmatada por grileiros nos últimos anos.

Em vez de expulsá-los, o governador do estado, Marcos Rocha, aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro, assinou uma lei em 2021 reduzindo os limites do parque para legalizar a grilagem das terras. Uma ordem judicial anulou essa lei, mas as invasões e o desmatamento não pararam.

Crédito: André Penner/ AP Photo

Em fevereiro, a água do rio ficou turva e vermelha, assustando Oro Waram. “Nunca tinha visto isso na minha vida”, disse o homem de 48 anos, que culpa o desmatamento ilegal desenfreado pelo episódio.

O vereador conta que, devido à poluição causada pelas fazendas de gado e plantações de soja, sua aldeia não bebe mais água diretamente do rio, como faziam seus antepassados. Em vez disso, eles passaram a depender de poços artesianos.

O povo Wari' é o maior grupo de falantes da família linguística Chapakuran, uma língua isolada.

Mas, às vezes, a ameaça é bem direta. Em 6 de junho, cerca de 60 homens armados invadiram a aldeia Linha 26, expulsando seus habitantes, que só retornaram após a intervenção da Polícia Federal, segundo a organização que representa os Wari’.

“Os madeireiros adentraram e dividiram as terras indígenas”, conta Gilmar Oro Nao, vice-presidente da associação Oro Wari’. “Eles colocaram em risco a nossa segurança alimentar. Nossos familiares não têm mais onde pescar e as árvores de castanha-do-pará foram derrubadas. Tiraram todo o nosso sustento.”

Oro Nao também conta que os Wari’ não confiam nos funcionários locais da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Segundo ele, há uma suspeita generalizada de que os agentes colaboram com madeireiros ilegais e grileiros.

Crédito: André Penner/ AP Photo

A Funai foi procurada para comentar, porém, não respondeu. O Ministério Público Federal, responsável pela defesa dos direitos indígenas, informou ter aberto uma investigação sobre as invasões e disse que vem monitorando a situação.

Os Wari’ esperam que a nova lei que concede status de pessoa às águas do rio possa ajudar a resolver o que eles veem como inação da Funai e do Ministério Público Federal.

A terra indígena Rio Negro Ocaia, aguarda aprovação para a ampliação das fronteiras estabelecidas por um estudo realizado há 15 anos.

Sua principal disposição cria um comitê para monitorar o rio, com um conselho composto por membros indígenas e não indígenas, incluindo um representante da Universidade Federal de Rondônia. Ele vai produzir um relatório anual sobre o estado do rio e propor medidas para garantir os direitos estabelecidos pela nova lei.

Em uma região onde o agronegócio se tornou a força econômica predominante, foi uma surpresa para muitos que a lei tenha recebido aprovação unânime do conselho municipal de Guajará-Mirim, uma cidade de 40 mil habitantes, com mais de 90% de seu território situado em áreas protegidas.

“Estamos muito felizes com a nova lei. Ela trouxe visibilidade para o nosso município e serve de exemplo para outras cidades e territórios indígenas”, diz a prefeita da cidade, Raissa Paes Bento, que sancionou a lei.

Ela ressalta que a preservação do Komi Memem também é importante para os habitantes não indígenas, visto que a pesca é uma das principais atividade econômica e uma fonte de alimento. “É muito bom ver o rio preservado e limpo.”


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