Virando a chave: tecnologia para a paz deveria ser a nova fronteira da inovação

Com o uso de análises preditivas para intervir antes que conflitos comecem, a tecnologia para a paz tem tudo para se tornar um mercado bilionário

Crédito: Andrei Castanha/ Unsplash

Artur Kluz e Stefaan Verhulst 5 minutos de leitura

O mundo vive um aumento histórico nos gastos com defesa. Nos Estados Unidos, o orçamento militar para 2025 chegou a US$ 895 bilhões – um dos maiores crescimentos já registrados em tempos de paz.

A Europa segue o mesmo caminho. Após anos de resistência, países da OTAN finalmente estão atingindo – e, em alguns casos, superando – a meta de investir 2% do PIB em defesa. Na China, os gastos com o setor também não param de crescer, ultrapassando os US$ 240 bilhões.

A lógica por trás disso é simples, mas preocupante: o mundo parece cada vez mais instável e os países estão se armando em uma velocidade e escala que não são vistas desde a Guerra Fria. Boa parte desse movimento se retroalimenta: muitos estão investindo em armamento ao ver outros fazendo o mesmo.

Nesse cenário de insegurança, as alianças globais estão sendo reconfiguradas. A relação transatlântica, antes baseada na colaboração em segurança, passa agora a girar em torno do poderio militar e da lógica da dissuasão.

Essa mudança também está impactando o setor tecnológico. Cada vez mais recursos públicos e privados estão sendo direcionados para tecnologias de dupla utilização – como IA, infraestrutura de dados, robótica, cibersegurança e ativos espaciais – que atendem tanto a fins civis quanto militares.

No meio dessa corrida armamentista tecnológica, uma pergunta essencial segue sendo ignorada: a tecnologia não poderia ser usada também para prevenir conflitos e salvar vidas?

A resposta é sim – e iniciativas nesse sentido já existem. De sistemas de alerta que detectam riscos de violência a plataformas que garantem mais transparência na distribuição de ajuda humanitária, passando por aplicativos que conectam refugiados a serviços básicos. A tecnologia para a paz (ou algo como "paztech", em português) é real, funciona – mas ainda recebe muito pouco investimento.

Em 2020, o secretário-geral da ONU, António Guterres, anunciou uma meta ambiciosa: arrecadar US$ 1,5 bilhão, ao longo de sete anos, para apoiar ações de construção da paz. Para efeito de comparação, só em 2023, o setor privado investiu mais de US$ 34 bilhões em tecnologias voltadas exclusivamente para defesa.

POR QUE A TECNOLOGIA PARA A PAZ É IGNORADA

Uma das razões é cultural. No universo tecnológico, a paz ainda é vista por muitos como algo abstrato, utópico – um conceito “leve” demais em um mundo dominado por tecnologias “duras”. Isso não poderia estar mais longe da verdade. É uma das tarefas mais difíceis e complexas da nossa era.

Construir e manter a paz exige pensamento sistêmico, ação antecipada, articulação global e uma estrutura robusta de cuidado, confiança e monitoramento. Em um mundo polarizado e tecnologicamente avançado, sustentar a paz exige engenharia, diplomacia e visão de longo prazo.

E isso também representa uma grande oportunidade de negócios. Segundo o Instituto para a Economia e a Paz, a violência gera um custo anual de mais de US$ 17 trilhões por ano – cerca de 13% do PIB mundial. Pequenos avanços na promoção da paz já poderiam liberar bilhões em valor econômico.

Com a ajuda da análise preditiva, governos e organizações poderiam intervir antes que conflitos e crises se agravassem. Ferramentas baseadas em IA poderiam ajudar a monitorar iniciativas de cessar-fogo ou conter a disseminação de desinformação. Se for ampliada, a tecnologia para a paz tem tudo para se tornar um mercado bilionário e uma peça central na arquitetura de segurança do futuro.

É hora de expandir o atual conceito de dupla utilização da tecnologia – voltado para o uso civil e militar – e transformá-lo em um modelo triplo, que inclua também a promoção da paz como um pilar.

Isso significa estruturar os investimentos de forma a fortalecer não apenas o poderio bélico e a competitividade econômica, mas também a prevenção, mediação e resolução de conflitos.

Fundos de capital de risco, por exemplo, poderiam destinar de 5% a 10% de seus investimentos em tecnologias de dupla utilização para iniciativas focadas na tecnologia para a paz. Governos também poderiam reservar parte do orçamento de defesa para inovação voltada à construção da paz.

a tecnologia não poderia ser usada também para prevenir conflitos e salvar vidas?

Alianças de segurança como a OTAN poderiam incorporar a tecnologia para a paz em suas diretrizes, desenvolvendo e implemen- tando tecnologias que reduzam tensões, indo além da lógica de dissuasão ou confronto direto.

Isso não é uma utopia ingênua. É inovação prática. Durante a pandemia de Covid-19, vimos como governos e especialistas em tecnologia conseguiram unir forças para criar aplicativos de rastreamento, acelerar o desenvolvimento de vacinas e responder à crise global em tempo real.

Por que não aplicar o mesmo senso de urgência e mobilização para enfrentar a atual onda de conflitos e instabilidade?

PARA QUE SERVE A TECNOLOGIA, AFINAL?

A tecnologia nunca foi realmente neutra. Ela é uma ferramenta moldada pelas prioridades de quem a financia e implementa. No momento, os investimentos globais em inovação revelam uma crença tácita de que o conflito é inevitável e a paz, acidental. Essa lógica precisa e pode ser revertida.

Na era da inteligência artificial e do domínio digital, começa a emergir uma “Pax Technica”. Não como uma utopia, mas como uma estratégia: garantir a paz por meio da superioridade tecnológica.

Governos poderiam reservar parte de seus orçamentos de defesa para inovação voltada à construção da paz.

Nesse cenário, áreas como tecnologia para a paz e para defesa precisam trabalhar lado a lado, desenvolvendo soluções não apenas para evitar conflitos, mas para construir estabilidade e salvar vidas.

A eficácia dessas iniciativas, no entanto, depende de três pilares essenciais: velocidade, integração fluida e capacidade de adaptação em tempo real. Sem isso, mesmo os sistemas mais avançados vão falhar em missões críticas.

O futuro da paz global está diretamente ligado à mobilização rápida da inovação tecnológica – para responder a ameaças, proteger civis e garantir a segurança antes que a violência se instale.

As ferramentas que vão moldar o futuro da segurança já estão sendo construídas. A pergunta é: vamos usá-las apenas para travar guerras ou também para construir a paz e salvar milhões de vidas?


SOBRE O AUTOR

Artur Kluz é investidor e empreendedor, fundador e CEO da Kluz Ventures. Stefaan Verhulst é cofundador do The GovLab (Nova York), do T... saiba mais