Tem espaço para realidade no meio de tanta ficção?
Realidade e ficção sempre caminharam lado a lado, uma reforçando a outra. Quando tentamos narrar experiências que vivemos, nossa mente supre as lacunas da memória com recheios imaginários. É um processo involuntário e inevitável. Do mesmo modo, os criadores de obras ficcionais encharcam seu trabalho com verdades, expostas com uma profundidade inatingível por outros meios. Nenhum noticiário nos alerta para as consequências do totalitarismo com a mesma eficácia de livros como "1984", de George Orwell, ou "O Conto da Aia", de Margaret Atwood.
É bonito e enriquecedor esse convívio entre o ficcional e o real, mas o relacionamento se complica quando a ficção tenta sabotar a realidade. Dois fatores são determinantes para viabilizar a sabotagem:
1) Um mundo real onde os absurdos se acumulam e histórias inverossímeis acontecem aos montes;
2) Um mundo virtual cada vez mais atraente, onde todos se sentem empoderados para narrar e compartilhar qualquer coisa, por mais implausível que seja, em busca da ilusória projeção social que nos trazem as curtidas e comentários. Pense no prazer e nos danos provocados pelas drogas. Essa é a metáfora.
Ficção não é sinônimo de mentira, assim como storytelling aplicado ao marketing não pode ser transformado em ilusionismo.
Mas será que tudo se empastelou a ponto de não podermos mais distinguir uma coisa da outra? O resultado pretendido pelos que investem no caos está claro. Seu interesse é desmoralizar a verdade através de desinformação, para obter vantagens políticas ou econômicas. Storytelling fake na comunicação de marcas e produtos também entra nesse pacote. Freada de arrumação: Ficção não é sinônimo de mentira, assim como storytelling aplicado ao marketing não pode ser transformado em ilusionismo.
Debruçado há vários anos sobre o tema, escrevi os livros “Storytelling – Histórias que deixam marcas” (2015) e “Storytelling 2 – A bomba embaixo da mesa” (2022). Em ambos me refiro ao jogo entre realidade e ficção. No mais recente, destaquei o esforço da ficção ilegítima para se fingir de realidade, e apontei a suspensão da descrença como elemento-chave para separar o joio do trigo.
Expressão formulada pelo britânico Samuel Taylor Coleridge em 1817, suspensão da descrença é a atitude voluntária de abandonar o bom senso e o conhecimento dos fatos para se deixar conduzir pelos ventos narrativos. O escritor português José Luís Peixoto se refere a ela como “o modo como o leitor decide aceitar a lógica de um texto de ficção, mesmo que a reconheça como irreal”.
Fica fácil de entender se pensarmos em "Game of Thrones", série da HBO eleita como a melhor do século XXI, que levou uma gigantesca audiência mundial a acompanhar as intrigas de poder em torno dos sete reinos de Westeros, uma região inexistente, numa época indefinida, tudo temperado com poderes mágicos, sob a ameaça de um inverno que preocupava a totalidade dos personagens. “Winter is coming” tornou-se um refrão marcante. Seu universo foi abraçado pelo público. Gerou engajamento, encantamento e emoções verdadeiras, sem nunca se disfarçar de real, portanto, cumpriu o que se espera da ficção legítima.
Nunca as instituições, os profissionais sérios, a ciência e a imprensa foram tão bombardeados e precisaram tanto da nossa proteção.
Um exemplo gritante do lado sombrio da ficção (a ilegítima) está nos relatos de grupos como o QAnon, que inventam histórias focadas nos grandes medos do público a que se dirigem – ameaças à família, lavagem cerebral dos jovens nas universidades, hordas de pedófilos invadindo as instituições e coisas do gênero –, provocando uma reação de defesa instintiva que atropela a capacidade de avaliação, embaça o discernimento, atiça pânicos e ódios variados. Em vez da suspensão da descrença (que – insisto – é consciente e voluntária), eles provocam a supressão da descrença.
Subverteram de uma grande virtude da internet: proporcionar a todos a oportunidade de ser storyteller e mídia ao mesmo tempo. Essa virtude foi usada para difundir histórias falsas em grande escala, contando com a cumplicidade dos algoritmos que agrupam e estimulam os usuários das redes por critérios que não poderiam ser mais danosos e irresponsáveis. Nunca as instituições, os profissionais sérios, a ciência e a imprensa foram tão bombardeados e precisaram tanto da nossa proteção.
As leis se mostram incapazes de inibir os excessos. Para chegarmos a um final feliz nessa história, temos que entrar em cena. Haja botão de alarme, haja compromisso com a vigilância, haja punição aos infratores. Deixar de comprar as marcas mentirosas, por exemplo, está ao alcance de todos, e é a mais temida das punições.