Venda de créditos de carbono realmente ajuda na proteção das florestas?
US$ 100 milhões foram gastos em compensações de carbono para proteger florestas em 2022. Mas críticos dizem que muitos dos projetos são inúteis
Observando imagens de satélite da floresta amazônica no Brasil, é possível acompanhar o avanço do desmatamento ao longo dos anos. Mas, em uma de suas bordas, uma área em formato de triângulo – chamada Manoa – continua verde.
Quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência, em 2019, e enfraqueceu as leis ambientais e a fiscalização, o desmatamento disparou em todo o país, subindo 75% em comparação com a década anterior. Grandes fazendas de soja começaram a se expandir nas proximidades, mas em Manoa as árvores se mantiveram em grande parte intactas.
Isso porque essa extensa área de floresta – quase tão grande quanto a cidade de Nova York – se tornou um “projeto de carbono” há uma década. A terra, que pertence a uma empresa de móveis, já era administrada de forma sustentável há vários anos. Um pequeno número de árvores era derrubado de acordo com um cronograma, mas a área permanecia intacta e saudável.
No entanto, o desmatamento ilegal começou a se aproximar. O dono da terra, em parceria com a Biofílica, uma empresa brasileira de gestão de conservação, contratou guardas para monitorar e patrulhar a propriedade em busca de invasores – e treinou membros da comunidade indígena local em agrossilvicultura e manejo florestal sustentável.
Esse trabalho foi financiado por meio da venda de compensações de carbono, uma prática que tem sido amplamente criticada, especialmente quando se trata de evitar o desmatamento (também conhecido como REDD+, ou Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal).
É incontestável que o desmatamento é um dos principais impulsionadores das emissões globais.
Uma investigação realizada no início deste ano pelo “The Guardian”, pelo jornal alemão “Die Zeit” e pelo centro de jornalismo investigativo sem fins lucrativos “Source Material” analisou uma amostra de compensações florestais certificadas pela Verra, a maior organização global do setor, e descobriu que mais de 90% delas eram “créditos fantasmas” sem valor, pois os desenvolvedores dos projetos haviam superestimado seu impacto nas emissões (a Verra contestou as críticas).
O projeto Manoa emitiu 482.344 créditos entre 2012 e 2016, o que, nos mercados de carbono, equivale a evitar a mesma quantidade de toneladas de emissões de CO2. Uma análise independente constatou que o benefício climático real provavelmente era quase o dobro disso.
“Acreditamos que os números sejam maiores”, afirma Elias Ayrey, cientista florestal e cofundador da Renoster, startup que avalia projetos de crédito de carbono para fornecer análises imparciais de seus benefícios.
Em resposta às críticas, houve uma redução de cerca de 22% no uso de compensações de conservação florestal nos últimos dois anos, segundo a Allied Offsets, organização que monitora a indústria. Em junho, o CEO e fundador da Verra renunciou e o valor das compensações REDD+ diminuiu.
Mas existem projetos bem-sucedidos, como o Manoa, que, de acordo com a Biofílica, não teriam sido possíveis sem o financiamento das compensações. Um estudo realizado pela Universidade de Cambridge de uma amostra de 40 projetos globais constatou que eles ajudaram a reduzir o desmatamento em 47%. Então, seria possível fazer com que mais desses projetos funcionem de fato?
COMO MEDIR O DESMATAMENTO QUE NÃO ACONTECEU?
O mercado voluntário de carbono, no qual créditos são vendidos e comprados para capturar ou evitar emissões, surgiu na década de 1990, mas cresceu significativamente há apenas cerca de sete anos, à medida que mais empresas passaram a adotar metas climáticas ou afirmar que seus produtos são neutros em carbono.
É possível adquirir créditos de uma variedade de projetos, sendo os mais comuns aqueles relacionados ao reflorestamento ou à preservação de florestas existentes.
É incontestável que o desmatamento é um dos principais impulsionadores das emissões globais. No entanto, é um desafio demonstrar as emissões evitadas em uma floresta específica, pois é necessário comprovar um cenário hipotético em que o desmatamento ocorreria caso o projeto não estivesse em vigor.
Normalmente, os operadores de projeto selecionam áreas não protegidas de floresta nas proximidades para fins de comparação e monitoram o que ocorre ao longo do tempo. Mas alguns escolhem a dedo essas áreas para fazer com que o projeto pareça ser mais eficiente do que realmente é. “A tendência natural é escolher áreas com um maior índice de desmatamento do que o esperado”, afirma Ayrey.
destinar parte do dinheiro para a preservação das florestas é melhor do que gastá-lo em anúncios no Super Bowl.
No entanto, ele argumenta que é possível obter números precisos. Quando revisa um projeto específico, sua organização utiliza um algoritmo para selecionar uma área de comparação com base em fatores semelhantes, como o tipo de floresta, topografia e acesso a estradas.
Também avalia o risco de “vazamento” – ou seja, a possibilidade de o desmatamento se espalhar para outras áreas devido à proteção do projeto – e o risco da perda de árvores por outros motivos, como incêndios florestais ou secas.
A Renoster produz relatórios detalhados para empresas que consideram compensações específicas. Seis meses após a conclusão, eles são compartilhados publicamente para que qualquer pessoa possa acessá-los. O relatório sobre o projeto Manoa foi o primeiro a ser divulgado.
A Pachama, empresa que analisa projetos de carbono e vende créditos se eles atenderem a critérios rigorosos de avaliação, adota a mesma abordagem. Ela utiliza uma combinação de imagens de satélite, dados de sensores LiDAR e outras informações para monitorar as mudanças ao longo do tempo.
A maioria dos projetos, é rejeitada devido a falhas. Menos de 30% são aceitos na plataforma. Muitas das empresas que procuram os serviços da Pachama estão preocupadas com problemas de qualidade no mercado em geral.
“No passado, as empresas podiam confiar nos créditos de carbono”, diz o CEO da empresa, Diego Saez Gil. “Agora, estão percebendo que não se trata apenas de um pedaço de papel.
Algumas organizações defendem que o financiamento das ações de conservação seja feito por um fundo independente, em vez de compensações.
Elas estão mais conscientes e aprendendo a garantir que seus parceiros realizem uma diligência adequada.” Ferramentas melhores para monitorar florestas remotamente revelaram questões importantes, e o escrutínio por parte dos jornalistas aumentou.
Algumas empresas decidiram ir além, optando por não comprar compensações baseadas no desmatamento evitado. “Quando nos comprometemos a nos tornar carbono negativos até 2030, dissemos que nos concentraríamos em atividades de remoção de carbono”, afirma Phillip Goodman, diretor de remoção de carbono da Microsoft.
“Esses são projetos nos quais podemos demonstrar de forma mensurável que algo realmente aconteceu. Não se trata apenas de evitar o desmatamento, mas sim de plantar mais árvores. E faremos isso com projetos nos quais temos a confiança de que agricultores e silvicultores mantêm essas árvores saudáveis e promovem seu crescimento.”
O QUE PODE SUBSTITUIR O MERCADO DE CRÉDITO?
A principal crítica a qualquer tipo de compensação é que, se as empresas simplesmente puderem comprar créditos, elas terão menos incentivo para implementar as mudanças necessárias para reduzir diretamente sua própria poluição climática ou seu papel no desmatamento.
Além disso, as compensações florestais enfrentam um outro desafio: como as árvores podem morrer, ser derrubadas ou queimadas em incêndios florestais, o carbono que elas sequestram não é permanente. Enquanto isso, as emissões provenientes da queima de combustíveis fósseis permanecerão na atmosfera por milênios, o que torna a equivalência das compensações inadequada.
Existem, é claro, muitas outras maneiras de combater o desmatamento que não dependem de compensações. Em áreas onde o problema é generalizado, uma fiscalização governamental mais rigorosa pode ajudar.
Algumas organizações sem fins lucrativos, como a Rainforest Action Network, defendem que o financiamento das ações de conservação seja feito por meio de um fundo independente, em vez de usar compensações.
Ainda assim, é provável que a pressão sobre as florestas continue vindo de fontes menos escrupulosas. A venda de compensações poderia, teoricamente, oferecer mais uma camada de proteção. Mas, mesmo uma empresa que esteja tentando reduzir radicalmente outras emissões não é capaz de remodelar o sistema baseado em combustíveis fósseis em que vivemos. Portanto, destinar parte do dinheiro para a preservação das florestas é melhor do que gastá-lo em anúncios no Super Bowl.
se as empresas simplesmente puderem comprar créditos, terão menos incentivo para reduzir diretamente suas próprias emissões.
“Claro, isso não significa que [as empresas] não devam investir mais na transição para energias renováveis”, ressalta Saez Gil. “O que estamos observando, na verdade, é que as empresas que mais investem em créditos de carbono baseados na natureza – pelo menos aquelas com as quais trabalhamos – são as que mais investem na descarbonização”.
O CEO da Pachama defende que o ideal seria que mais empresas adotassem a abordagem da Microsoft, que também assume a responsabilidade pelas emissões históricas de carbono, para que os créditos possam ir além da simples “neutralização” da poluição atual.
Apesar de evitar créditos REDD+, outros reconhecem sua importância. A empresa de tecnologia Shopify, por exemplo, afirma que, embora as compensações florestais representem uma pequena parte dos créditos de carbono que adquire, há duas razões para apoiá-las.
“Queremos contribuir para um benefício climático imediato – desacelerar o desmatamento protegendo removedores de carbono existentes – ao mesmo tempo em que ajudamos a promover a remoção permanente de carbono a longo prazo”, afirma Stacy Kauk, chefe de sustentabilidade da empresa.
“Queremos apoiar fornecedores que tomam medidas para aumentar a credibilidade dos créditos de carbono florestais. Sabemos que eles continuarão a ser usados pelas empresas, e queremos ajudar a aumentar sua eficácia”, acrescenta Kauk.
De acordo com Lambert Schneider, coordenador de pesquisa de política climática internacional no Oeko-Institut, na Alemanha, os métodos atuais precisam passar por várias revisões. Isso inclui a utilização de estimativas mais conservadoras e uma melhor avaliação do risco de incêndios florestais, que podem resultar na perda do carbono armazenado nas florestas.
Os auditores precisam de mais supervisão e poderiam ser remunerados por meio de canais separados, para evitar conflitos de interesse. Os detalhes dos projetos também precisam ser compartilhados de forma mais transparente, incluindo informações sobre como as reduções de emissões estão sendo calculadas e quanto do dinheiro proveniente dos créditos de carbono está sendo repassado aos grupos responsáveis pela implementação.
“No geral, eu diria que o mercado precisa passar por uma reforma significativa para desempenhar um papel relevante no futuro”, argumenta Schneider. “Resta saber se a pressão será suficiente para impulsionar mudanças nas abordagens atuais.”