Crise climática ameaça mercado de hipotecas nos EUA

As alterações climáticas corroem sem alarde os alicerces do mercado imobiliário dos EUA; o resultado pode ser desastroso e ter um impacto nas mesmas proporções da crise econômica de 2008

um sobrado no meio de situações que representam a crise climática, como a seca e os incêndios
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Kareem Saleh 9 minutos de leitura

Em 2008, o sonho americano da casa própria se transformou em um pesadelo que afundou a economia global. O culpado? Uma mistura tóxica de hipotecas ruins e a mentalidade de cassino. Hoje, outra bomba-relógio financeira está funcionando — e esta é alimentada pela elevação do nível do mar, incêndios florestais e uma dose letal de negação. O risco vem da crise climática.

As mudanças climáticas estão corroendo silenciosamente os alicerces do mercado imobiliário americano. Da costa da Flórida, atingida por furacões, aos subúrbios da Califórnia devastados pelo fogo, uma crise está se formando e pode fazer o colapso das hipotecas subprime parecer um ato de aquecimento.

As hipotecas subprime são aqueles empréstimos imobiliários concedidos a pessoas com crédito ruim ou limitado.

A crise será desencadeada pelo seguro residencial. Para obter uma hipoteca, você precisa de um seguro residencial. Mas em estados do Cinturão do Sol americano, vulneráveis ​​ao clima, como Califórnia e Flórida, as seguradoras estão fugindo ou aumentando os prêmios a níveis exorbitantes.

Em algumas áreas, os custos do seguro residencial dobraram ou triplicaram em apenas três anos. Em outras, as apólices estão desaparecendo completamente.

Enquanto isso, numa ironia impressionante, as 16 maiores seguradoras dos EUA detêm mais de US$ 500 bilhões em investimentos em combustíveis fósseis — arrecadando prêmios com uma mão e financiando os desastres climáticos que as obrigam a pagar com a outra.

PROPRIETÁRIOS DE IMÓVEIS EM RISCO


Proprietários de imóveis e aposentados
são alvos fáceis. Flórida, Arizona e Texas atraem idosos com sol e incentivos fiscais, mas quem tem uma renda fixa, como no caso deste público, não consegue absorver o caos climático. No Arizona, os prêmios de seguro residencial aumentaram 62% desde 2019, impulsionados pelos riscos de incêndios florestais. O Texas viu as taxas subirem 40% desde 2015, com furacões e outros desastres climáticos atingindo o estado.

Imagine um aposentado vendo seu prêmio de seguro disparar de US$ 7.500 para US$ 17.000 da noite para o dia. Os aposentados da Flórida gastam 34% de sua renda média com seguro residencial. Em nível nacional, aposentados dedicam 8% de sua renda ao seguro residencial.

As opções dessas pessoas diante do efeito da crise climática são sombrias: drenar as economias, vender os imóveis, ficar inadimplente ou, no caso dos proprietários de suas casas, “ficar sem nada”, ignorando totalmente o seguro. Trata-se de uma aposta arriscada.

Multiplique isso por milhões de pessoas e você terá uma liquidação de casas, queda nos valores das propriedades e cidades fantasmas de ativos abandonados. Um estudo de 2023 constatou que os imóveis dos EUA expostos ao risco de inundações estão supervalorizadas em US$ 121 bilhões a US$ 237 bilhões.

Os governos locais sentirão a pressão como nunca antes. A Flórida financia escolas, estradas e forças policiais por meio de impostos sobre a propriedade. Paradise, na Califórnia, que foi devastada por um incêndio florestal em 2018, perdeu 90% de sua base de impostos sobre a propriedade e quase toda a sua receita local.

O que acontece com uma cidade quando sua base tributária entra em colapso? Detroit, a Cidade do Automóvel, oferece um exemplo de alerta aqui.

A população de Detroit despencou de um pico de cerca de 1,8 milhão na década de 1950 para apenas 700.000 em 2010. Houve desemprego e a fuga de moradores. A cidade americana mergulhou na maior falência municipal da história dos EUA. As luzes das ruas literalmente se apagaram; bairros inteiros foram abandonados.

Ao contrário do declínio industrial de Detroit, um gatilho futuro seria uma calamidade natural — mas o resultado final (uma cidade incapaz de pagar suas contas) poderia ser assustadoramente semelhante. Miami ou Nova Orleans poderiam enfrentar um destino semelhante?

HIPOTECAS SUBPRIME ESTÃO DE VOLTA


E não se pode deixar de levar em consideração dos bancos: eles têm trilhões de dólares em hipotecas vinculadas a casas que em breve poderão ficar sem seguro, inabitáveis ​​ou submersas (literalmente).

A crise americana do subprime de 2008 ensinou que, se os proprietários de imóveis entrarem em inadimplência em massa, o contágio pode se espalhar. Isso pode acontecer por meio de títulos lastreados em hipotecas e derivativos. Só que, desta vez, não são os tomadores de empréstimo ruins, mas sim terras inabitáveis, desencadeando uma reação em cadeia semelhante.

Na década de 2000, os credores tratavam as hipotecas subprime como um bufê livre, convencidos de que os preços dos imóveis só aumentariam. Hoje, os credores se apegam à fantasia de que o risco climático é "administrável" ou "precificado". Mas, ao contrário do que esse credores pensam, não é.

Pesquisas da consultoria McKinsey revelam que, mesmo reconhecendo os riscos climáticos, as seguradoras não integraram significativamente esses mesmos riscos em suas estratégias de investimento ou práticas de subscrição de hipotecas. Essa dissonância cognitiva reflete a crise de 2008, quando as agências de classificação de risco impuseram classificações AAA ao que eram essencialmente títulos de alto risco.

À medida que as tempestades se intensificam e as temporadas de incêndios florestais se prolongam, a inadimplência de hipotecas aumentará. E adivinhe quem está no comando? São os contribuintes. Por meio, por exemplo, da Fannie Mae (como é conhecida a Federal National Mortgage Association, ou FNMA, uma empresa de capital aberto, garantida pelo governo dos Estados Unidos, que desempenha um papel crucial no mercado hipotecário americano. Também estaria nesse papel a Freddie Mac, empresa de securitização imobiliária dos EUA com grande papel no desenrolar da crise de 2008.

Assim como em 2008, originadores de hipotecas experientes estão discretamente transferindo hipotecas arriscadas para entidades apoiadas pelo governo, tornando o contribuinte o segurador máximo da ilusão climática dos Estados Unidos.

Subúrbios extensos em planícies de inundação, mansões em corredores de incêndio e pontos cegos regulatórios criaram um esquema Ponzi - operação fraudulenta sofisticada de investimento do tipo esquema em pirâmide que envolve a promessa de pagamento de rendimentos - de risco climático.

Aqui está o problema: há pouca chance de o risco climático ser "contido" — para usar a famosa garantia equivocada de Ben Bernanke, ex-presidente do Banco Central americano (Fed) sobre o subprime. O contágio financeiro se espalhará rapidamente pelos mercados porque as hipotecas vulneráveis ​​ao clima, assim como os empréstimos subprime antes delas, foram agrupadas, securitizadas e distribuídas por todo o sistema financeiro global.

COMO MITIGAR O DESASTRE


Então, quais são as consequências quando essa bolha estourar?

Aposentados forçados a sair, cidades falidas, bancos socorridos — seria como o que foi visto em 2008, mas com um lado de elevação dos oceanos.

A lição do subprime foi simples: negar a realidade não elimina o risco; apenas garante uma quebra mais forte.

MEDIDAS ANTI-BOLHA

A crise iminente não é um mistério, e as soluções também não. Pode-se tomar medidas agora mesmo para desarmar essa "bolha imobiliária climática" antes que ela estoure.

Em primeiro lugar, os formuladores de políticas podem exigir muito mais transparência sobre os riscos climáticos. Os compradores de imóveis têm o direito de saber se aquela casa de campo à beira-mar, com preços acessíveis, tem probabilidade de inundar.

Surpreendentemente, estados como a Flórida (com algumas das maiores supervalorizações) não exigem que os vendedores divulguem o risco de inundação aos compradores. Leis de divulgação obrigatória para riscos de inundação, incêndio e calor injetariam alguma realidade nos preços e afastariam algumas pessoas do perigo.

Em seguida, é necessário acabar com os incentivos perversos que estimulam a construção e reconstrução em zonas de desastre. Durante décadas, o governo dos EUA — por meio de seguros contra inundações baratos, auxílio em caso de desastre e investimentos em infraestrutura — socializou o risco climático, efetivamente pagando a conta de empreendimentos arriscados com o dinheiro do contribuinte.

O Programa Nacional de Seguro contra Inundações americano, por exemplo, historicamente cobrou taxas abaixo do mercado e acumulou US$ 20 bilhões em dívidas, exigindo repetidos resgates. Agora, a economia está caminhando para a precificação baseada em risco, o que é doloroso para os proprietários, mas absolutamente necessário para sinalizar onde é seguro (e não seguro) construir.

Da mesma forma, as autoridades poderiam tornar mais rigorosos os códigos de zoneamento e construção em áreas de alto risco, ou até mesmo proibir novas construções nas planícies de inundação e zonas de incêndio mais expostas. omo um ex-diretor da Agência Federal de Gestão de Emergências sugeriu sem rodeios: parem de oferecer seguros com garantia do governo para casas novas em zonas de inundação.

Paralelamente, bancos e órgãos reguladores devem levar a sério a integração do risco climático nas decisões de empréstimo. Isso pode significar exigir uma cobertura de seguro robusta (além dos padrões mínimos) para imóveis hipotecados, ajustar a relação empréstimo/valor ou os termos dos empréstimos em áreas de ultrarisco e incorporar dados climáticos aos modelos de subscrição ao avaliar carteiras de hipotecas.

A Fannie Mae e a Freddie Mac, em particular, deveriam liderar, não comprando empréstimos para imóveis obviamente condenados. Por que estender uma hipoteca de 30 anos para uma casa que pode estar submersa (literalmente) em 20?

No nível comunitário, é preciso reforçar a resiliência climática para proteger o valor dos imóveis: diques mais fortes e redes reforçadas, sim, mas também conversas difíceis sobre recuo estratégico. Em alguns lugares, o plano mais seguro é ajudar as pessoas a se mudarem agora, em vez de reconstruir pela quinta vez após um desastre.

O PAPEL DE FORMULADORES DE POLÍTICAS

Os formuladores de políticas podem criar fundos para resgates voluntários e realocações para que famílias vulneráveis ​​encontrem moradias mais seguras — um "recuo gerenciado" que seja humano e esteja à frente da curva.

Nada disso é fácil nem barato. Mas a alternativa — manter nosso curso atual — é muito mais custosa. A crise de 2008 ensinou que riscos não considerados nos mercados imobiliários podem colocar toda a economia de joelhos. Temos hoje a oportunidade de evitar uma repetição, desta vez impulsionada pelo clima e não pelo crédito. Isso exigirá coragem política, uma gestão de risco sóbria por parte dos credores e, sim, custos iniciais mais altos em alguns casos.

Mas precificar proativamente o risco climático (e mitigá-lo sempre que possível) é como medicina preventiva. Pode doer agora, mas nos salvará de um sofrimento muito maior no futuro.

O colapso imobiliário de 2008 eliminou US$ 7 trilhões em patrimônio imobiliário e devastou comunidades; um colapso induzido pelo clima pode ser ainda pior se não fizermos nada.

Será que os formuladores de políticas e credores agirão antes que Miami se transforme em Atlântida e Phoenix em um alto-forno?

Ou continuarão repetindo o mesmo mantra — "os preços dos imóveis só sobem" — até que os diques se rompam, literal e financeiramente?

O tempo acabou. A água está subindo. E desta vez, não há resgate financeiro suficiente.


SOBRE O AUTOR

Kareem Saleh é o fundador e CEO da FairPlay, a primeira empresa de Justiça como Serviço do mundo a auxiliar instituições financeiras a... saiba mais