Fake news sobre o Pix vencem briga com a Receita e impactam a economia

Mentiras espalhadas pelas redes sociais nos últimos dias mostram como a lógica econômica de um país pode ser manipulada e descredibilizada

Pete Linforth por Pixabay, Steve Johnson/Unsplash, Richard Darko via Getty images

Paula Pacheco 8 minutos de leitura

As informações falsas miram alguns objetivos: descredibilizar, causar danos e favorecer uma parcela de seus disseminadores. Foi assim, por exemplo, durante a pandemia da covid-19 e nas enchentes no Rio Grande do Sul.

Nos últimos dias, o alvo das fakes news foi uma Instrução Normativa (IR) da Receita Federal, a RFB 2219/2024, em vigor desde o início do ano, que trata da obrigatoriedade de as operadoras de cartões de crédito e instituições financeiras de informarem semestralmente os dados sobre as transações via Pix e cartões de crédito com valores acima de R$ 5.000/mês (pessoa física) e R$ 15 mil (pessoa jurídica).

O que se viu foi o compartilhamento em velocidade exponencial de informações falsas sobre a taxação do Pix. As mentiras saíram do ambiente das redes sociais e foram parar na vida real, com um movimento não mensurável de trabalhadores informais, autônomos e donos de pequenos negócios informando aos clientes que passariam a cobrar mais quando os pagamentos fossem feitos com Pix. Ou ainda, que deixariam de oferecer a modalidade como opção.

GOVERNO CEDEU

Na quarta-feira (15), em reunião entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Haddad, da Fazenda, Robinson Barreirinhas, da Receita Federal, e Jorge Messias, da Advocacia-Geral da União, foi decidido que a IN perderia a validade apenas 14 dias depois de entrar em vigor. A Medida Provisória (MP) foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) nesta quinta-feira (16).

André Perfeito viu o efeito da fake news do Pix na economia do dia a dia na prática. Ao fazer uma compra na banca de jornais perto de casa, na zona oeste de São Paulo, viu o aviso sobre a decisão do pequeno empreendedor de não aceitar mais o pagamento com Pix.

"O medo gera engajamento"

André Perfeito, economista

O experiente economista analisa os motivos que levaram as mentiras nas redes sociais a gerarem tanta espuma. "Essa fake news foi muito bem administrada, porque tem uma dinâmica do mundo da internet que acelera as noticias falsas. Afinal, o medo gera engajamento", sintetiza.

Um dos medos de quem acreditou e compartilhou dados falsos sobre o meio de pagamento digital era que o governo passasse não apenas a monitorar de perto os ganhos - tanto daqueles que cumprem com as obrigações tributárias quanto entre os sonegadores -, mas também embolsasse parte da renda por meio da cobrança de imposto.

Fonte: Banco Central do Brasil/janeiro de 2025

AMBIENTE DE DESCONFIANÇA

Na opinião do economista, as mentiras sobre o Pix ganharam tração tão rapidamente porque refletiram o sentimento de parte da sociedade de que a economia pode estar em fase de desaceleração. O comportamento inflacionário seria um dos ingredientes da desconfiança.

"Existe uma camada nessa história que deve ser observada. Além da dinâmica do que é ruim gera mais engajamento, há o desconforto de alguns segmentos. E a resposta do governo mostra que ele se sente fragilizado em relação aos desafios que tem, por isso voltou atrás", aponta Perfeito.

Todo o barulho dos últimos dias pode ter efeito não apenas na credibilidade do Pix, avalia o economista, mas também no futuro de outro avanço tecnológico desenvolvido pelo Banco Central, o Drex - a moeda digital brasileira, que tem a expectativa de ser lançada em 2025 e hoje está na segunda fase piloto (com testes para soluções de privacidade e garantia de sigilo aos usuários), com o envolvimento de instituições financeiras.

"As feridas que o Pix sofreu, com consequências microeconômicas, podem ser maiores com o tempo"

André Perfeito, economista

Segundo Perfeito, o não uso do Pix, seria um desastre, pois "se trata de um instrumento ágil, fácil e bem construído pelo BC". "Imagina que impacto pode haver no Drex, que é algo mais sofisticado. As feridas que o Pix sofreu, com consequências microeconômicas, podem ser maiores com o tempo", aponta.

Carlos Affonso Souza, cofundador e diretor do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), professor da Faculdade de Direito da UERJ e da PUC-Rio, analisa uma das razões que pode explicar a facilidade com que a credibilidade do Pix foi desmontada.

“A questão do Pix passa pela tecnologia, que traz algo novo. Assim como no caso das urnas eletrônicas, as pessoas não sabem muito bem como funciona, se podem ser monitoradas. Isso cria um cenário propício para desinformação, que usa o discurso de que se está revelando a verdade escondida, ou jogando luz naquilo que está oculto”, explica Souza. Se até agora se acreditava que o meio de pagamento digital era novo e melhor, "agora, há dúvidas se é mesmo confiável".

“O carnaval ainda não chegou, mas o bloco das fakes news já está na rua, arregimentando e balançando toda a massa”

Carlos Affonso Souza, cofundador e diretor do ITS

O diretor do ITS é categórico quanto ao papel da indústria das fake news. "O carnaval ainda não chegou, mas o bloco das fake news já está na rua, arregimentando e balançando toda a massa."

Para o professor, o que aconteceu agora foi uma "desinformação ancorada em sensações como a de que esse é um governo que vai taxar e que mexe com um recurso vital no dia a dia das pessoas, que é o Pix. Foi uma estratégia bem-sucedida para testar o ecossistema de desinformação”. O caso Pix, diz Souza, deve deixar o governo mais atento a assuntos sensíveis à população e as narrativas que podem ser geradas.

INFLAÇÃO ALIMENTA FAKE NEWS

Em janeiro de 2024, o próprio Banco Central divulgou um estudo sobre os efeitos das fakes news na economia e, mais especificamente, na inflação, elaborado por Breno Lima Moreira. Foram analisados 1.187 relatos de desinformação de uma agência de checagem de 2019 a 2023 (de janeiro a maio). No período, foi verificado que o tema da economia cresceu entre os relatos de desinformação nos últimos dois anos. Segundo o pesquisador, em 2019, o assunto ocupou 1,1% da amostra e, em 2023, 9,9%.

Entre os relatos de desinformação, a participação do tema da inflação foi de 3,6% em 2022 para 9,9% em 2023, segundo Moreira. O assunto apareceu na forma de relatos sobre o seu nível em determinado período e a variação de preços de produtos ou serviços específicos.

OS TIOS DO ZAP

As informações falsas sobre a taxação do Pix, que resultaram no recuo do governo, não ganharam força apenas porque há quem sinta que a economia da vida real refreou. Se o momento econômico pode causar alguma inquietação entre a população, a crença do brasileiro em fake news é outro aspecto relevante no episódio que envolveu Receita Federal, Fazenda, Palácio do Planalto, AGU e, em breve, a Polícia Federal - que deve investigar a disseminação de notícias falsas, segundo declarou o advogado-geral da União.

Pesquisa divulgada em fevereiro de 2024 pelo Instituto Locomotiva revela que 88% dos entrevistados admitiram já ter acreditado em uma informação ou notícia que, mais tarde, descobriram ser falsa. A maioria (91%) tinha entre 18 e 29 anos e 95% disseram os grupos de WhatsApp eram sua principal fonte de informação. Os temas mais citados foram venda de produtos ou serviços, campanhas eleitorais, políticas públicas, vida privada e crimes de políticos.

Perguntados sobre o sentimento depois de descobrirem que acreditaram em uma fake news, os entrevistados citaram principalmente a ingenuidade, raiva e ignorância. O levantamento do Instituto Locomotiva apurou ainda que um quarto (24%) do universo pesquisado já foi acusado de compartilhar informação falsa. Quando o número é extrapolado para a população do Brasil, equivale dizer que 37 milhões de brasileiros foram pegos repassando uma mentira.

Também chama a atenção o fato de 83% concordarem com a afirmação que "existem grupos e pessoas que tiram proveito de determinadas fake news" e 65% admitirem que "robôs e inteligência artificial hoje são utilizados para produzir e espalhar fake news". Foram entrevistadas 1.032 pessoas com 18 anos de idade ou mais.

DAQUI PARA FRENTE

As operações com o Pix bateram recorde em 2024, segundo dados do Banco Central. As movimentações chegaram a R$ 26,46 trilhões; alta de 54,6% em relação a 2023, quando a soma foi de R$ 17,12 trilhões.

Estatísticas de Transações Pix
Fonte: Banco Central do Brasil/janeiro de 2025 *dados mensais referentes às transações liquidadas no Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI) e às informações enviadas por participantes do Pix de transações liquidadas fora do SPI. Valores e montantes Pix são a soma das transações cursadas no SPI e das transações cursadas fora do SPI.

Nos primeiros dias de janeiro, à medida que as notícias falsas foram disseminadas, houve um recuo nas transações. O Banco Central analisa como um fator sazonal - em janeiro, costuma haver uma queda nas operações por causa das despesas acumuladas no fim de ano e do período de férias. Agora, a expectativa é saber se a confiança no Pix será retomada.

Paralelamente a essa descrença dos consumidores, há a mudança de comportamento dos empreendedores. Muitos costumavam dar um pequeno desconto para quem usava o Pix como meio de pagamento. E agora, mesmo com a decisão do governo de anular o efeito da IN, será que a opção voltará a ser oferecida pelos mais desconfiados? Ou o Brasil vai ver um recuo nas transações e a volta dos pagamentos em dinheiro ou cartão de crédito?


SOBRE A AUTORA

Paula Pacheco é jornalista old school, mas com um pé nos novos temas que afetam, além do bolso, a sociedade, como a saúde do planeta. saiba mais