Pix: o que explica o ataque ao principal meio de pagamento do Brasil
Por ordem de Trump, o Escritório do Representante Comercial dos EUA especula que o país esteja metido em "uma série de práticas desleais com relação a serviços de pagamento eletrônico, incluindo, entre outras, a vantagem de seus serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo governo”

O primeiro item do documento de 15 páginas divulgado pelo Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês), referente a uma investigação contra o Brasil, determinada pelo presidente americano Donald Trump, mira decisões do Judiciário brasileiro contra Big Techs e bate em uma das ferramentas financeiras mais populares do país (se não for a mais popular delas): o Pix.
SUSPEITA DE PRÁTICAS DESLEAIS
O Pix não é citado nominalmente, mas o USTR relata que “o Brasil também parece se envolver em uma série de práticas desleais com relação a serviços de pagamento eletrônico, incluindo, entre outras, a vantagem de seus serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo governo”.
BC E A ATUAÇÃO DA META
Não demorou até que a insinuação do documento do USTR fosse associada a um caso de 2020, envolvendo o Banco Central do Brasil (BC) e a big tech Meta, do bilionário Mark Zuckerberg.
No dia 23 de junho daquele ano, numa reação ao pedido do BC, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) impôs medida cautelar para suspender a operação de parceria, no Brasil, entre Facebook e Cielo, por meio da qual as empresas pretendiam viabilizar pagamentos via WhatsApp. O Facebook e o WhatsApp pertencem à Meta. Procurada, a empresa não quis comentar o assunto.
Pouco antes da decisão do Cade, no dia 15 de junho, o WhatsApp passou a permitir que as pessoas enviassem dinheiro a conhecidos e pagassem por produtos e serviços de empresas sem sair do aplicativo – um tipo de facilidade financeira que guarda semelhanças com o Pix, lançado em novembro de 2020. Era o lançamento do sistema de pagamentos da plataforma WhatsApp Pay no Brasil.
PARA O BC, FALTAVA AUTORIZAÇÃO
Na época, o BC alegou que o serviço de pagamentos do WhatsApp dependia de autorização prévia. Sem cumprir essa etapa de avaliação de riscos, a solução de pagamentos poderia afetar a competição, a eficiência e a privacidade dos dados dos usuários. Daí a decisão de encaminhar o recurso ao Cade.
Para o BC, a avaliação de potenciais riscos permitiria ter garantias do funcionamento adequado do Sistema de Pagamentos Brasileiro (o SPB). Já o Cade apontou ‘potenciais riscos” para a concorrência. A autoridade monetária foi consultada sobre o documento do USTR e as dúvidas sobre o Pix, mas não respondeu.
Na época da decisão do Cade, o WhatsApp divulgou a seguinte nota:
- “Nosso objetivo é fornecer pagamentos digitais para todos os usuários do WhatsApp no Brasil, com um modelo aberto e trabalhando com parceiros locais e o Banco Central. Além disso, apoiamos o projeto PIX do Banco Central, e junto com nossos parceiros estamos comprometidos em integrar o PIX aos nossos sistemas quando estiver disponível”.
Apenas em março de 2021, quatro meses após o início do Pix, o BC deu o ok para que o sistema WhatsApp Pay pudesse oferecer o serviço de transferências entre pessoas físicas.
PARA ESPECIALISTA, PAPEL DO BC DEVE SER REVISTO
Luciano Timm, advogado especialista em Direito Econômico e em Disputas, professor, presidente da Associação Brasileira de Liberdade Econômica (ABLE) e ex-chefe da Secretaria Nacional do Consumidor (de janeiro de 2019 a agosto de 2020, período do Governo Bolsonaro), analisa o caso. O especialista é um crítico do papel do BC no Pix, que ele classifica como uma fintech estatal.
Timm explica que BC, além de operar o Pix, "exerce o poder regulatório sobre o setor, o que gera uma assimetria de posição competitiva". A seguir, trechos da entrevista.
Fast Company Brasil - É possível afirmar que a referência feita no documento do Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos tem a ver com o Pix?
Luciano Timm - A menção se relaciona com o Pix na medida em que, no Brasil, o Pix é atualmente o único serviço de pagamento eletrônico (“arranjo de pagamentos”) de abrangência nacional criado e operado diretamente pelo Estado, por meio do Banco Central. Dito de outro modo, o Pix é uma espécie de “fintech” estatal. Isso é inusual no direito comparado internacional e tem provocado, inclusive, que o Banco Central tenha se afastado um pouco de sua tarefa regulatória.
Assim, embora o relatório do USTR não cite nominalmente o Pix, a redação adotada — “serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo governo” — parece ser a ela a que ele se refere por regras de lógica de exclusão. Em um contexto em que o Pix avançou significativamente sobre mercados antes ocupados por empresas privadas e competindo com elas, é natural que isso passe a integrar o radar de interesses comerciais dos EUA. Afinal, é bastante discutível essa atuação do Estado na economia.
Fast Company Brasil - O senhor vê relação do item 1 do documento do USTR com a decisão do Cade, de 2020, que impôs medida cautelar para suspender a operação de parceria, no Brasil, entre Facebook e Cielo, para viabilizar pagamentos via WhatsApp?
Luciano Timm - O crescimento acelerado do Pix decorreu não apenas de sua eficiência, mas também de dois fatores institucionais relevantes. Em primeiro lugar, houve decisões liminares concedidas pelo Poder Executivo que restringiram a entrada de concorrentes privados. Em segundo, o próprio BC, além de operar o Pix, exerce o poder regulatório sobre o setor, o que gera uma assimetria de posição competitiva. Ou seja, o regulador é também operador e concorrente, situação que naturalmente atrai questionamentos de outros países, sob a ótica de defesa da concorrência e de acesso ao mercado.
Há, assim, uma potencial relação entre a atuação do Poder Executivo brasileiro por meio de seus órgãos (como Cade e BACEN) e o desenvolvimento do mercado de arranjo de pagamentos no Brasil.
Do ponto de vista norte-americano, que busca proteger o livre acesso de suas empresas a mercados estrangeiros, medidas interventivas e de atuação direta mesmo no mercado pelo Estado como o Pix podem ser interpretadas como entraves à livre concorrência. Talvez a pergunta que caiba aqui é o que o governo federal brasileiro está fazendo para garantir o acesso de empresas brasileiras no exterior e quanto o alinhamento ao Brics é favorável ao país.
Fast Company Brasil - O senhor vê a possibilidade de a tese do USTR sobe o Pix se sustentar?
Luciano Timm - O debate se dá em diferentes esferas. No Direito do Comércio Internacional, como comentei, países disputam seus interesses dentro dos marcos do Direito Internacional.
Essa fricção é comum no Direito Comercial Internacional. A parte do interesse corporativo fica em segundo plano, embora sempre possa existir, em qualquer país, uma esfera de influência mútua entre interesses públicos e privados no comércio internacional.
Quanto à interferência de um órgão federal americano, o USTR pode sim levantar essas questões em fóruns internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), que também pode receber reclamações do Brasil contra os EUA. Isso é do jogo.
Agora, o debate mais interessante para mim é se a atuação do BACEN está de acordo com o Direito Econômico brasileiro – sobre o que tenho sérias dúvidas, há muito tempo – e a governança para isso, caso seja admissível.
Nesse sentido, empresas interessadas — como a Meta — são as partes legitimadas para discutir eventuais restrições ou desvantagens concorrenciais nos órgãos brasileiros, seja por via administrativa ou judicial. Assim como as empresas brasileiras podem fazer o mesmo nos EUA. Essa a vantagem de disputas em países pautados por democracia e livre mercado.