Receita Federal vai igualar fintechs a grandes bancos

Decisão de dar o mesmo tratamento foi anunciada pelo ministro Fernando Haddad depois de megaoperação contra o crime organizado

Receita Federal vai igualar fintechs a grandes bancos
Yuuji via Getty Images

Paula Pacheco 6 minutos de leitura

A partir desta sexta-feira (29), as fintechs terão de cumprir as mesmas regras de transparência da Receita Federal válidas para os bancos. A informação foi anunciada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, depois de entrevista coletiva que detalhou o que foi apurado até agora na Operação Carbono Oculto. A ação investiga a adulteração de combustível, lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio de envolvidos com a organização criminosa PCC.

O TAMANHO DA MOBILIZAÇÃO

A ação envolveu o Ministério da Justiça, a Receita e a Polícia Federal, o Ministério Público Federal (MPF), Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), polícias Civil e Militar, Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (Sefaz-SP) e PGE-SP (Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo)


IGUALDADE DE CONDIÇÕES

A medida administrativa, segundo Haddad, enquadra as fintechs - como são chamadas as empresas que, por meio da tecnologia, oferecem serviços financeiros de forma simples e rápida - como instituições financeiras. Assim, elas terão de cumprir as mesmas obrigações dos grandes bancos. A Receita conseguirá aumentar, a partir daí, a fiscalização e analisar dados para coibir a lavagem de dinheiro.

“Com isso, aumenta o potencial de fiscalização da Receita e a parceria da Receita com a Polícia Federal para chegar nos sofisticados esquemas de lavagem de dinheiro que o crime organizado tem utilizado”, disse o ministro da Fazenda aos jornalistas, em Brasília.

A Receita declarou em nota que “as fintechs têm sido utilizadas para lavagem de dinheiro nas principais operações contra o crime organizado, porque há um vácuo regulamentar, já que elas não têm as mesmas obrigações de transparência e de fornecimento de informações a que se submetem todas as instituições financeiras do Brasil há mais de 20 anos."

Ainda segundo o órgão, “o crime organizado sabe disso e aproveita essa brecha para movimentar, ocultar e lavar seu dinheiro sujo.”

No início do ano, o governo planejou a adoção de um monitoramento das fintechs. No entanto, a equipe econômica teve de recuar após a disseminação de informações falsas referentes ao que seria uma taxação do Pix. O tema contaminou o ambiente político e a Receita teve de recuar.

AS MUDANÇAS DA RECEITA

A nova instrução normativa, que entra em vigor nesta sexta-feira, terá quatro artigos sobre as regras de fiscalização das fintechs. São eles, segundo informação da Receita:

  • No primeiro artigo, o texto deixará claro o objetivo de combater o crime.
  • O segundo artigo afirma, de maneira clara e direta, que as instituições de pagamento e de arranjos de pagamento (fintechs) sujeitam-se exatamente às mesmas obrigações das instituições financeiras tradicionais (apresentação da e-Financeira).
  • No parágrafo único do segundo artigo, a Receita fará referência expressa à Lei do Sistema de Pagamentos Brasileiro (art. 6º da Lei 12.865 de 2013), adotando estritamente suas definições de instituições de pagamentos, arranjos de pagamento e contas de pagamento, “deixando claro que não estamos criando nada de novo, apenas adotando as definições da lei já existente”, segundo a Receita.
  • Os parágrafos 3º e 4º são instrumentais, referindo-se à regulamentação e à vigência a partir da publicação.

MUITO DINHEIRO ENVOLVIDO

O anúncio do ministro da Fazenda ocorreu na esteira da descoberta de um grande volume de recursos e dos meios usados pela organização criminosa para “legalizar” seu caixa. A Receita informou que cerca de 1.000 postos de combustíveis vinculados ao grupo movimentaram R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024.

Os valores faturados pela facção, de acordo com a Receita, iam para o sistema financeiro por meio de fintechs. Uma delas, especializada em pagamentos, atuava como “banco paralelo” da organização criminosa e movimentou mais de R$ 46 bilhões não rastreáveis de 2020 a 2024.

Foram usados como estruturas de ocultação de patrimônio pelo menos 40 fundos de investimento (multimercado e imobiliários), com patrimônio de R$ 30 bilhões pertencentes ao PCC. Na maioria dos casos, são fundos fechados com um único cotista, geralmente outro fundo de investimento -, criando camadas de ocultação.

Entre os bens adquiridos por esses fundos estão um terminal portuário, quatro usinas produtoras de álcool (mais duas usinas em parceria ou em processo de aquisição), 1.600 caminhões para transporte de combustíveis e mais de 100 imóveis (entre eles, seis fazendas no interior de São Paulo), avaliadas em R$ 31 milhões), e uma residência em Trancoso, no litoral baiano, adquirida por R$ 13 milhões.

“As mesmas pessoas controlavam outras instituições de pagamento menores, usadas para criar uma dupla camada de ocultação. A fintech também recebia diretamente valores em espécie”, informou a Receita. Mais de 10,9 mil depósitos em espécie foram realizados entre 2022 e 2023, em um valor que superou os R$ 61 milhões. “Este é um procedimento completamente estranho à natureza de uma instituição de pagamento, que opera apenas dinheiro escritural”, alertou o órgão.

Entre as empresas investigadas pela megaoperação, feita em oito estados, está a Reag Investimentos, que tem ações negociadas na B3, a bolsa de valores de São Paulo.

Por meio de nota, a Reag Investimentos diz que "colabora integralmente com as autoridades responsáveis pela Operação Carbono Oculto" e que "agiu de forma regular e diligente" em relação aos "fundos de investimento apurados em que a empresa atuou como prestadora de serviço".

O QUE DIZEM OS BANCOS

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) também comentou a operação. A entidade apontou como um um “marco decisivo para avançar na ação do Estado brasileiro e atacar, de modo frontal, o crime organizado no país e, primordialmente, para desvendar e desmontar toda a teia de sua estrutura financeira.”

“Essa megaoperação também se mostra fundamental, especialmente para identificar e segregar quais agentes do sistema financeiro estão, ou não, a serviço do crime organizado. Não há outro caminho, diante do cenário que emergiu com diversos novos players de mercado, incluindo fintechs, que, claramente, não se submetem ao mesmo rigor dos controles de integridade e de prevenção a ilícitos financeiros já, de há muito, aplicados aos bancos do país”, acusou a Febraban.

Para a entidade que representa os bancos, há um “desequilíbrio entre, de um lado, inovação, abertura do mercado e concorrência, o que se mostra importante, e, de outro, segurança do sistema financeiro e a inafastável necessidade de controles e punição. Com a proliferação de instituições que atuam no mercado, essas operações mostram que é essencial investigar e punir, com rigor, instituições, autorizadas ou não a funcionar pelo Banco Central, que se aproveitam de suas estruturas para desenhar engenharias e servirem como canais e veículos do crime organizado”, acrescentou.

Para a Febraban, como nem todas as instituições em operação no país têm autorização do BC, isso cria assimetrias que ampliam os riscos do sistema financeiro.

O QUE DIZEM AS FINTECHS

Também por meio de nota, a ABFintechs, que representa as fintechs, declarou que, com a atualização nas regras, a Receita busca “modernizar os atos normativos existentes e acompanhar a evolução do mercado financeiro, incluindo as instituições de pagamento e o arranjo PIX como sujeitos de obrigações de reporte e compartilhamento de dados para fins de conformidade tributária.”

“Trata-se de uma medida relevante e necessária para avançar na supervisão e garantir maior alinhamento regulatório e transparência nas operações”, pontuou a ABFintechs.

No entanto, a associação declarou na noite de quinta-feira não ser possível antecipar o conteúdo final da norma antes de sua publicação, prevista para esta sexta-feira. Por isso, apenas depois da publicação “será possível avaliar com precisão os impactos concretos para as fintechs, incluindo eventuais adaptações necessárias.”


SOBRE A AUTORA

Paula Pacheco é jornalista old school, mas com um pé nos novos temas que afetam, além do bolso, a sociedade, como a saúde do planeta. saiba mais