Criadores negros e não-brancos querem racializar a moda brasileira

Crédito: Fast Company Brasil

Claudia Penteado 8 minutos de leitura

Principal evento da moda brasileira, a São Paulo Fashion Week (SPFW) tem servido de espaço para uma iniciativa que visa preparar o público para marcas com propostas que tragam mais diversidade e olhares diferentes sobre a criação. Na edição N52, a primeira depois de duas 100% digitais, realizada nesta semana, o projeto Sankofa levou para a passarela, em desfiles presenciais, coleções desenhadas por talentos pretos, pardos e não-brancos.

Esse é um ponto em comum entre os criadores e empreendedores que fazem parte desse grupo, formado por sete grifes emergentes: Ateliê Mão de Mãe, Az Marias, Meninos Rei, Mile Lab, Naya Violeta, Santa Resistência e Silvério. É o que afirma Rafael Silvério, líder do projeto e uma das cabeças pensantes da startup de inovação social Vamo (Vetor Afro-Indígena na Moda), que surgiu no ano passado. O Sankofa nasceu da mobilização da Vamo junto com o movimento Pretos Na Moda, fundado por Natasha Soares.

O principal objetivo do Sankofa é racializar a moda brasileira. É mexer com a consciência racial nesse setor, historicamente pouco inclusivo para cores e corpos. Cumprir essa missão não é simples. “Vejo a SPFW como um lugar de educação. Não sei quanto o brasileiro está preparado para isso”, admite Rafael, que é também diretor criativo da grife Silvério. De acordo com ele, é preciso abrir diálogo entre os criadores e o público, já que a maior parte dos consumidores da moda exibida nas passarelas do Brasil é branca. “Eles têm de entender nossa linguagem”, emenda.

O que isso significa? “O pensamento negro se dá de outra forma. A narrativa é diferente. Os corpos também. E nem se deve ter as mesmas expectativas”, responde, referindo-se a eventuais comparações com outras grifes que costumam exibir suas coleções no calendário da moda. “A gente quer fazer com que o mercado compreenda isso. Por exemplo, não temos como oferecer pronta-entrega com muita produção. Não temos como entregar um grande volume de peças”, explica. Isso porque, em geral, as marcas de empreendedores pretos contam com equipes pequenas e têm uma produção muito mais artesanal.

Quanto aos corpos, Rafael esclarece: “Temos ombros maiores e mais busto. Os quadris mais largos e nosso balanço é diferente. Algumas empresas que trabalham com moda já perceberam isso, mas em geral é necessário mostrar que existe uma nova concepção de corpo, que vai além do magro das modelos brancas”. As grifes que têm designers não-brancos, de negros a indígenas, acabam levantando, assim, outras bandeiras. “A diversidade de formas nunca foi tão valorizada quanto agora. Nossa moda expressa isso e valoriza também a comunidade LBTQIA+. A gente vê a diversidade como uma questão importante do mercado”, completa.

Exposição, mentoria e sobrevivência

A proposta do Sankofa foi apresentada para a SPFW, que acolheu o projeto neste ano. A organização incluiu as marcas selecionadas pelo grupo e estabeleceu um programa de três temporadas. Além do espaço para exposição das peças criadas, as empresas seriam preparadas e desenvolvidas para se consolidarem no mercado. Ou seja, com a mentoria de profissionais de diferentes áreas (entre eles, psicólogos, advogados e contadores) e com o apoio de marcas-madrinhas, que já fazem parte no line-up do evento, as grifes teriam mais chances de crescer e se destacar.

Em abril, na edição N51, as marcas se apresentaram pela primeira vez. Agora, elas retornaram para a nova temporada da SPFW. “A grande diferença entre uma e outra é o número de looks na passarela. E também ser um desfile presencial. A presença das pessoas conta muito. A gente faz uma moda afetiva e ter o acesso do público e perceber seus olhares dá outro peso ao evento”, comenta Rafael Silvério.

Para a N53, em abril de 2022, embora seja cedo para falar neste momento, o que se pode vislumbrar é ter as sete marcas bem mais estruturadas. “A intenção é que elas estejam bem encaminhadas para permanecer no mercado e ter visibilidade”, diz o cocriador do projeto.

Nesta edição, as marcas tiveram três dias de desfiles – sendo o último o próprio Dia da Consciência Negra. Cada marca preparou entre 12 e 17 looks. Vale destacar que outros estilistas pretos estavam no line-up desta SPFW: Isaac Silva, Ângela Brito e Karine Fouvry. Alguns desses criadores apadrinham as grifes do Sankofa.

Confira um pouco da história das marcas do projeto:

Ateliê Mão de Mãe (Marca-madrinha na SPFW: Gustavo Silvestre, Projeto Ponto Firme)

Mão de Mãe

Destaca que a ancestralidade afrobrasileira é passada para frente através das técnicas manuais e artesanais praticadas por Vinicius Santana, Patrick Fortuna e Luciene Brito, criadores da grife, originária de Salvador. “Somos uma marca totalmente handmade com o principal objetivo de valorização da arte e profissionalização da mão de obra artesã e feminina. Nossa maior fonte de inspiração é uma mulher, mãe solteira que, para o sustento dos seus, desde cedo vem produzindo e comercializando sua arte. Nosso maior desejo é criar um coletivo de mulheres para profissionalização e inseri-las no mercado de trabalho.”

Vinicius sempre enxergou muito potencial na arte de sua mãe e inaugurou o sonho quando criou o Ateliê Mão de Mãe. Patrick trabalhava no varejo de moda, na extinta Yes Brazil, e Luciene é artesã desde os 14 anos. “Um projeto como o Sankofa faz a gente voltar a acreditar nos sonhos. Por muito tempo, estilistas racializados foram apagados da história da moda. Nunca tivemos a oportunidade de mostrar nossas criações e, acima de tudo, a liberdade de falar sobre ancestralidade”.

Az Marias (Marca-madrinha na SPFW: Isaac Silva)

Apresenta-se como uma marca de roupas sustentáveis, que celebra o corpo real e opera em slow fashion. Resíduos têxteis são transformados em novas roupas para corpos reais por Cintia Maria (Cintia Felix), que é formada em artes com habilitação em figurino e tem pós-graduação em design de moda. “A AZ Marias é um negócio de impacto socioambiental disposto a repensar o processo de fazer roupas, transformando resíduos têxteis em peça novas, treinando gratuitamente as costureiras para precificarem sua mão de obra de forma justa e correta, combatendo o trabalho análogo à escravidão e tendo o corpo real como centralidade da criação”.

Meninos Rei (Marca-madrinha na SPFW: João Pimenta)

Meninos Rei

Os criadores desta marca baiana são os irmãos Júnior e Céu Rocha. O primeiro é autodidata e trabalha com styling no mercado publicitário e cultural há mais de 15 anos. Céu é formado em design de moda e atua como estilista e stylist. “Um novo olhar está sendo despertado para quem produz moda no Nordeste e em outros lugares fora do eixo. O projeto Sankofa prova isso”, afirmam.

Os irmãos definem a Meninos Rei como uma marca esteticamente preta na sua fonte de inspiração. Segundo eles, a marca reapresenta de forma moderna “o tecido africano, um tecido ancestral e que, além de beleza, carrega muitas simbologias”.

– Mile Lab (Marca-madrinha na SPFW: Juliana Jabour)

Milena Lima, criadora da Mile Lab, é do bairro do Grajaú, na periferia de São Paulo. Começou a cursar design de moda na Universidade Anhembi Morumbi, mas teve de interrompera a faculdade para seguir com a marca. “A estrutura que dá vida a este corpo é o território, é a identidade marginal e a potência que transborda as margens, percebida dentro do Grajaú”, conta a jovem. Em suas palavras, a marca e a periferia representam “o embalo de um abraço que vai levando uma à outra para lugares onde sejam perceptíveis ao mundo”. Na concepção da criadora, a Mile Lab fala sobre a presença da força ancestral no corpo marginal.

Naya Violeta (Marca-madrinha na SPFW: Apartamento 03)

A grife tem um lema: “Contém Axé”, que é um resgate da religiosidade afrobrasileira de Naya Violeta. Ser do candomblé é parte constituinte de sua construção “como mulher preta, estilista e marca”, afirma. Graduada na Universidade Estadual de Goiás em design de moda, ela cresceu em quintais de tias costureiras, enxergando o fazer roupa como um processo de autonomia.

Para Naya, sua busca incessante é pela construção de uma moda que o mercado não oferecia: com representatividade. Por isso, o Sankofa é tão significativo para a estilista. “Fazer parte do projeto é adentrar a maior semana de moda da América Latina ao lado de marcas potentes”, observa. Para uma grife emergente, significa abrir caminho.

–  Santa Resistência (Marca-madrinha na SPFW: Angela Brito)

Mônica Sampaio, 52 anos, natural do Rio de Janeiro e engenheira eletricista é o nome por trás da Santa Resistência. A marca é essencialmente feminina sem necessariamente ser exclusiva de gênero. O DNA africano é marcante nas criações que buscam trazer a multiplicidade do continente em peças fluidas e com cores marcantes. “Este é um projeto percursor e as minhas expectativas são as melhores”, declara.

Silvério

Silvério (Marca-madrinha na SPFW: Vitorino Campos)

A marca de Rafael Silvério se propõe a “reinventar a noção de belo, combinando volumes inventivos com silhuetas lúdicas e românticas, buscando inspirações em questões autobiográficas, filosofia, psicologia, literatura, música e tecnologia”. Rafael é neto de duas costureiras e filho de uma mulher que consumia muita moda nos anos 90. Estar nesse ambiente inspirou sua inventividade e não demorou para que ele começasse a desenhar.

Ele cursou desenho de moda na Faculdade Santa Marcelina e também Negócios Internacionais e Comércio Exterior na Unip. O empreendedorismo veio como uma alternativa à dificuldade de encontrar colocação no mercado de moda. “Só fui me dar conta que essa não-colocação dentro da indústria era uma questão de racismo estrutural recentemente, após um letramento racial. A marca nasce como resposta a uma estrutura que sempre me disse não”, conta.


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais