Discursos de extrema direita e apolíticos dominam o cenário gamer brasileiro

Pesquisa do Laboratório de Impacto Gamer revela seis perfis e quatro visões políticas comuns das comunidades de jogadores

Crédito: davincidig/ iStock

Rafael Farias Teixeira 7 minutos de leitura

A história dos games mostra que esse universo nem sempre foi diverso ou deu espaço para grupos minorizados. Em razão da sua origem militarista e da prevalência de homens brancos, tanto em sua criação quanto na indústria, os games se tornaram um espaço povoado por comportamentos tóxicos e visões extremistas, algo que pode ser notado ainda mais recentemente com os jogos online.

Jogos virtuais fazem parte da cultura, e, por isso, não estão dissociados da política ou de outros aspectos da nossa vivência em comunidade, explica Flávia Gasi, escritora especializada em videogame e cultura geek, professora doutora de narrativa, produtora de conteúdo e estrategista no Laboratório de Impacto Gamer (LIGA).

Flavia Gasi (Crédito: Monica Silva/ Terra Preta Produções)

"A diferença é que, no game, o jogador é ator do processo e não apenas espectador. O jogo precisa que alguém pressione o botão, senão ele só existe como potência. Diferente da TV, por exemplo, que continua passando sua programação, mesmo se a pessoa sair da sala”, detalha.

Assim, segundo ela, há uma relação afetiva que pode ser construída entre jogo, jogador e mundo do game. “Essa relação pode nos auxiliar a debater política, representatividade e acolhimento nos espaços de sociabilidade gamer com mais empatia. Os universos de videogames e política sempre estiveram unidos. O que falta são pesquisas que mostrem como isso se dá no contexto brasileiro", complementa.

Para entender a relação dos gamers brasileiros com a política foi realizada a pesquisa "Identidade Gamer", que mostra os perfis dos jogadores brasileiros, assim como suas visões políticas e os lugares sociais que ocupam. A ideia é entender melhor o perfil desse público e agir nos espaços de sociabilidade para construir ambientes mais seguros e transparentes

O estudo foi realizado pelo LIGA e parceria com a Box1824 e ouviu jovens de 18 a 34 anos, de todo o Brasil, entre abril e junho de 2022.

Para compor o mapeamento, os pesquisadores também consultaram seis especialistas nesse universo, em diferentes campos (acadêmicos, streamers e profissionais do mercado), acessaram perfis de redes sociais de 40 gamers e entrevistaram 100 jogadores de diferentes idades, classes sociais, posicionamentos políticos, gêneros e regiões; além de realizar uma extensa pesquisa em diferentes fontes.

COMPORTAMENTO E POSICIONAMENTO

A primeira coisa que se tornou visível é que o perfil da maioria que desenvolve jogos e controla a indústria de games — homens brancos, de classes mais altas — não é o mesmo que o das pessoas que jogam:

Fonte: Pesquisa Identidade Gamer/ Purpose/ LIGA/ Box 1824

Em termos de comportamento dentro da comunidade gamer brasileira, o levantamento identificou seis perfis e suas principais características:

Fonte: Pesquisa Identidade Gamer/ Purpose/ LIGA/ Box 1824

Esses perfis se organizam a partir de dois eixos:

- Mais e menos hegemônicos: diz respeito ao quanto estão conectados com estereótipos residuais dos gamers ou com novas representações e brechas do contexto brasileiro

- Mais ou menos institucionais: referente ao quanto estão conectados com instituições formais (mercado, indústria, empresas) ou com novos grupos e organizações.

O perfil dos questionadores, por exemplo, é o menos institucionalizado de todos e um dos menos hegemônicos. Fazem parte de um grupo minorizado, que encontra muito mais do que jogos. Eles reconhecem seus iguais, criam comunidades e são vocais em relação às violências e invisibilizações de gamers que fogem da norma.

A pesquisa identificou ainda que os gamers brasileiros aderem a quatro visões centrais:

Fonte: Pesquisa Identidade Gamer/ Purpose/ LIGA/ Box 1824

Esse tipo de pesquisa, que se aprofunda nas identidades, comportamentos, valores e visões de mundo das diferentes comunidades de jogadores brasileiros, é um território ainda pouco explorado, segundo a coordenadora de campanha do LIGA, Lígia Oliveira.

"Para as organizações sociais, esse é um público muito novo. Por isso, impressiona quando mostramos a diversidade de perfis que existem dentro desse universo – que costuma ser percebido como dominado por homens, brancos, cis, ricos”, aponta a coordenadora.

Esses achados destoam muito dos dados demográficos do mercado consumidor de games no Brasil. “Entender essa diversidade é fundamental para que as organizações desenvolvam mais projetos sociais com foco nesse público", diz Lígia.

Para quem já é gamer, a definição dos perfis é uma sistematização sobre esse universo, na qual as pessoas podem se reconhecer em um ou mais deles.

CONSERVADORES E APOLÍTICOS

Ao olhar com atenção os diferentes perfis e seus alinhamentos políticos, é possível identificar uma prevalência de visões conservadoras ou mesmo indiferentes à política. Por ser um estudo qualitativo, não há uma dimensão exata de cada um desses públicos.

"Mas, de fato, é algo que percebemos quando olhamos para as características dos perfis e o histórico dos videogames. Os discursos da extrema direita, muito combinados com discursos apolíticos, têm sido mais disseminados nos últimos anos dentro desse campo", afirma Lígia Oliveira.

"Eles eram mais vocalizados, pelo menos até antes da pandemia. Isso porque as vozes de oposição não conseguiam ocupar o mesmo espaço, por uma série de fatores – a lógica do algoritmo em algumas plataformas (que tendem a impulsionar conteúdos extremistas), o medo de criadores de conteúdo de se posicionarem e perderem propostas comerciais ou mesmo sofrerem ataques; o viés ideológico de algumas empresas de games; e o fato de poucas organizações sociais estarem ocupando o espaço dos gamers hoje, entre outros motivos."

Lígia Oliveira (Crédito: Monica Silva/ Terra Preta Produções)

Segundo pesquisas, há perfis de gamers brasileiros não apenas interessados, mas impelidos e investidos em ver as comunidades de games como canais de conscientização e de mudança, aponta Flávia. Inclusive, há muitos criadores de games, criadores de conteúdo, pesquisadores e membros da comunidade que fazem disso sua realidade diária.

No meio dessa realidade, o LIGA espera inspirar o surgimento de novas iniciativas e somar àquelas que já estão promovendo mudanças nesse campo.

"Nosso objetivo é que mais discussões sejam feitas, que as pessoas percam o medo de falar de política nesses espaços, que dialoguem com respeito e que todos se sintam seguros, em suas identidades, a estar nesses espaços. Queremos construir cobertura política para que as mudanças possam acontecer – isso é, criar condições favoráveis para que se possa promover mais transformações nesse universo", afirma Lígia.

MARCAS E O UNIVERSO GAMER

O universo gamer é um espaço propício também ao desenvolvimento das mais diversas ações por parte de empresas. Muitas marcas estão fazendo campanhas e ativações voltadas para esse público. Essas iniciativas, geralmente, são divididas entre as mais lúdicas e as que trazem questões sociais para o centro da discussão.

Os resultados da pesquisa do LIGA mostram que, levando em conta os diferentes perfis de jogadores brasileiros, as empresas precisam adotar abordagens que funcionem melhor para cada um deles.

levando em conta os diferentes perfis de jogadores brasileiros, as empresas precisam adotar abordagens que funcionem melhor para cada um deles.

Para os memeiros, por exemplo, as ações mais divertidas funcionam bem, enquanto para os questionadores, algo mais reflexivo pode ter melhores resultados. Esses perfis também têm canais, estéticas, símbolos e linguagens variados, o que indica que as marcas devem trabalhar para entender essas nuances.

"Não podemos ser ingênuos e ignorar o fato de que o reposicionamento de algumas marcas para contemplar causas sociais é uma estratégia de mercado. Mas é preciso cobrar intencionalidade e coerência das empresas", afirma Lígia.

"Sabemos que a indústria dos games é composta por homens brancos héteros cis e de classe alta. Mas o mercado consumidor não, ele é essencialmente feminino, preto e pardo, de baixa renda, composto por pessoas que jogam no smartphone”, lembra a coordenadora.

Ela aponta que mudanças reais nas empresas podem ser percebidas quando o quadro de funcionários – e, principalmente, de líderes – reflete e contempla a diversidade do público.

“É preciso adotar mudanças estruturais no processo de contratação e permanência desses profissionais. Ao fazer isso, é possível perceber as mudanças na estratégia de comunicação também, uma vez que elas passam a contemplar diferentes pontos de vista."


SOBRE O AUTOR

Rafael Teixeira Farias tem mais de 14 anos de carreira em jornalismo e marketing digital, além de sete livros de ficção já publicados. saiba mais