Em sua oitava edição, Expocannabis Uruguai atrai brasileiros
Em sua oitava edição, a Expocannabis Uruguai é um evento que desperta cada vez mais a atenção dos brasileiros. Realizada durante três dias em Montevidéu, ela é um misto de conferência e feira de negócios com um quê de festival cultural. Na primeira vez em que foi organizada, Mercedes Ponce de León, fundadora e codiretora, chegou a se espantar com os brasileiros que ali chegaram. Como tinham descoberto o evento, já que foram discretos na comunicação? A resposta: pela força do ativismo que ultrapassa fronteiras.
Hoje, segundo os organizadores, os brasileiros correspondem a metade dos visitantes da Expocannabis, que começa nesta sexta-feira, 03, e vai até domingo, 05. Na parte de estandes, o evento deste ano atraiu mais de 150 expositores. Deles, 30% são de marcas estrangeiras e entre elas estão brasileiras.
A Expocannabis surgiu para ser uma plataforma de informação e intercâmbio de ideias e experiências, com o objetivo de debater diversos temas relacionados à cannabis e ao cânhamo – do uso medicinal aos desafios financeiros, da escolha dos tipos de sementes a biotecnologia empregada na produção – e para impulsionar negócios. É uma exposição onde convivem o Estado, organizações sociais, empresas privadas, a população local e também os visitantes vindos de fora.
Ao recordar aquela primeira edição, em 2014, Mercedes conta que ela foi organizada às escondidas. No ano anterior, em 2013, o Uruguai tinha regulamentado a produção, o consumo e o comércio de cannabis. Podiam falar, expor e exibir a planta viva – como, aliás, o fazem desde então; ao menos um espécime está sempre lá, à vista de todos –, porém temiam alguma pressão contrária por grupos ainda insatisfeitos com a liberação.
Por esse motivo, apenas duas semanas antes do evento, resolveram divulgá-lo. Atualmente, é bem o oposto. A Expocannabis Uruguai tem presença nas redes sociais e tem canal no YouTube. Seus organizadores fazem visitas a outros países, procurando empresas que já têm negócios legalizados, associações e especialistas. Tudo para fazer circular as histórias e as experiências de quem luta para expandir o mercado, que é impactado sobretudo pelo preconceito e pela falta de conhecimento. “Há muita sede de informação”, comenta Mercedes.
Neste ano, o evento está com sabor de reencontro da comunidade. Em 2020, ele aconteceu de forma híbrida. Pelo fato de o encontro ser em dezembro, os piores dias do isolamento provocado pela pandemia já tinham passado, mas, ainda assim, não era possível repetir o público de outras edições. “Foi o único evento do mundo canábico que pôde ser presencial no ano passado. E o fizemos seguindo protocolos sanitários”, reforça a fundadora.
Agora, com a vacinação, o número de visitantes pode ser ampliado. Em 2019, foram 18 mil os visitantes. Desse total, 40% eram estrangeiros. Ao contrário do ano passado, não haverá lives, mas parte do conteúdo será disponibilizado nos canais online em meados de 2022.
TENDÊNCIAS DA INDÚSTRIA CANÁBICA
Uma das discussões deste ano é a das aplicações de uso veterinário. Nessa trilha, há uma palestra do professor Erik Amazonas, da Universidade Federal de Santa Catarina, que introduziu a disciplina de endocanabiologia na faculdade de veterinária. Presidente da Associação Brasileira de Acesso à Cannabis Terapêutica (Abraflor) e diretor científico da Rede de Cannabis Medicinal Veterinária do Brasil, ele é uma referência na área.
Outro tema que promete chamar atenção se refere a ativos digitais. No painel “Blockchain, criptomoedas e NFTs na indústria da cannabis”, o argentino Adrian Martin e o espanhol Marc Casellas discutem como o blockchain pode mudar a forma como as organizações desenvolvem e fazem a gestão de suas atividades.
Os dois integram o grupo conhecido como Cannamarketers, uma associação espanhola formada por profissionais de marketing e de comunicação especializados no assunto. A entidade criou seu próprio token, o CNNMK, para estabelecer novos parâmetros para a indústria canábica na gestão de suas propriedades intelectuais. A Cannamarketers, inclusive, incentiva o uso do CNNMK para o pagamento da assinatura de ingresso na entidade.
As criptomoedas são vistas como uma alternativa para o mercado porque grande parte das instituições bancárias tradicionais não está preparada para as transações do setor e restringe a movimentação do dinheiro. “A indústria canábica sofre um bloqueio financeiro global, a começar pelos EUA, gerando consequências para todo o segmento. Essas restrições são um problema, porque não se consegue operar negócios com liberdade”, afirma Mercedes. Entre as soluções adotadas atualmente por algumas empresas estão modelos de investimento do tipo crowdfunding e arrecadação de fundos por meio da comercialização de NFTs.
A fundadora da Expocannabis destaca mais um tema dentro da conferência: o feminino no universo canábico. Um dos painéis, “Primavera feminista: rompendo estigmas e cultivando liberdades”, conta com a antropóloga brasileira Luana Malheiro, mãe de paciente, integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa) e cofundadora da Lanpud (Rede Latino-americana e Caribenha de Pessoas que Usam Drogas). A Renfa tem organizado encontros e espaços de diálogos de mulheres que atuam na área de política de drogas ou em movimentos, como os da Marcha da Maconha.
Na mesma mesa está a ativista mexicana Polita Pepper. Ela também é antropóloga, além de escritora, educadora e produtora de conteúdo. Polita fundou a Cannativa, associação civil de estudos multidisciplinares de plantas medicinais e enteogénos (plantas capazes de alterar a consciência). Outra participação nesse painel é da uruguaia Rocío del Pilar Deheza, integrante da Articulação Latino-americana de Feministas Antiproibicionistas e do coletivo Imaginário 9, que tem um programa que busca difundir saberes associados a substâncias psicoativas.
MULHERES; DIFAMAÇÃO E CÁRCERE
O encontro dessas três mulheres irá detalhar o surgimento do movimento Primavera Feminista Antiproibicionista, que se desenvolveu de maneira virtual em outubro passado com oficinas e debates sobre a guerra às drogas e como as mulheres estão entre os grupos mais difamados dentre aqueles que fazem uso de substâncias ilícitas. Essa articulação feminina envolveu representantes de Argentina, Bolívia, Chile, Costa Rica, Equador, Espanha, México, Peru, Portugal, Uruguai e do Brasil.
Mais dois temas nessa seara demonstram a preocupação da organização com as questões sociais e o feminismo envolvendo a cannabis. Em “Políticas de drogas, gênero e privação de liberdade na América Latina”, a professora mexicana Corina Giacomello, do Centro de Investigações Jurídicas da Universidade Autônoma de Chiapas, compartilha sua vivência na área, sobre a qual escreveu diversos livros. Especialista em direitos humanos, Corina vem conduzindo pesquisas sobre mulheres presas por delitos relacionados a drogas e sobre crianças e adolescentes com mães e pais encarcerados por esse motivo, bem como sobre mulheres internadas a força em centros de tratamento.
O outro painel é comandado por Mercedes, que trabalha ativamente no mercado desde 2008, quando se especializou nas diferentes etapas de produção da cannabis medicinal na Califórnia. Em “Ronda de mulheres canábicas e antiproibicionistas”, ela aborda o papel feminino nos esforços pela regulamentação. Mercedes também ressalta a maior penalização que recai sobre as mulheres. As ativistas assumem frequentemente a linha de frente da luta pela legalização do consumo, da produção e do comércio. Porém há também o lado do tráfico, em que muitas mulheres são cooptadas por organizações criminosas, atuando no transporte de drogas. “Há mais mulheres presas do que homens. Existe uma grande desigualdade nessa questão”.
E, para arrematar, um documentário será exibido: “Cannábicas”, produção em que mais de 200 mulheres de 30 países mostram suas realidades nesse campo, com foco em política, direitos sociais e humanos e sustentabilidade. Disponível no YouTube, o filme se coloca a favor da diversidade sexual e de gênero, do direito de as mulheres tomarem as decisões sobre seus corpos e seus prazeres e se manifesta pelo fim da guerra contra as drogas, que define como “uma guerra contra pessoas pobres e racializadas e contra as mulheres”. O documentário será debatido pela jornalista e diretora de filmes espanhola Clara Sativa, que coordenou essa produção, junto com Polita Pepper e Belen Riveros, antropóloga e ativista chilena.