Governo dos EUA começa a negar vistos para quem combate desinformação
Sob acusação de censura, medida mira jornalistas, pesquisadores e profissionais que trabalham com checagem de fatos e segurança digital

No início de dezembro, o Departamento de Estado dos Estados Unidos anunciou que estava orientando funcionários de embaixadas norte-americanas a rejeitar pedidos de visto de trabalho de pessoas envolvidas no que descreveu como “censura” da fala de cidadãos americanos online.
Em um telegrama diplomático inicialmente vazado para a agência Reuters, oficiais dos consulados foram instruídos a revisar perfis no LinkedIn de solicitantes de visto que mencionassem experiência profissional em áreas como “desinformação, moderação de conteúdo, checagem de fatos, compliance e segurança digital”.
Esse tipo de trabalho inclui jornalistas e checadores de fatos, acadêmicos, profissionais de educação midiática e uma ampla gama de trabalhadores do setor de tecnologia ligados ao campo conhecido como “confiabilidade e segurança”.
Não é a primeira vez que restrições de visto surgem a partir do que o governo Trump considera censura. A medida representa a mais recente escalada de uma campanha de cinco anos conduzida pelo Partido Republicano e seus aliados para desacreditar pesquisas sobre desinformação, que eles alegam silenciar visões conservadoras.
Houve um tempo em que o combate à desinformação e à interferência estrangeira em eleições era um esforço bipartidário. Em 2018, o Facebook foi convocado ao Congresso para responder pelo escândalo da Cambridge Analytica, no qual uma consultoria britânica foi acusada de direcionar desinformação eleitoral russa a usuários da plataforma.
A Meta e outras empresas de tecnologia rapidamente ampliaram suas operações de checagem de fatos. A Meta passou a firmar parcerias com veículos de imprensa para verificar informações, endureceu suas políticas de compartilhamento de dados, expandiu equipes de políticas públicas e implementou um programa global de parceiros confiáveis para trabalhar com organizações sem fins lucrativos no monitoramento de conteúdo prejudicial.
INTIMIDAÇÃO INSTITUTCIONAL
Essas políticas de fiscalização, porém, acabaram irritando republicanos, que se sentiram desproporcionalmente atingidos por elas. As empresas de tecnologia, na prática, não estavam censurando a liberdade de expressão. E, mesmo que estivessem, isso não configuraria violação da Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que protege os cidadãos apenas contra censura governamental.
Após 2020, a ira conservadora contra as plataformas por supostamente censurar postagens atingiu um ponto crítico, alimentada pelas tentativas das empresas de regular conteúdos antivacina durante a pandemia de Covid-19.
Não é a primeira vez que restrições de visto surgem a partir do que o governo Trump considera censura.
Em 2023, quando o deputado republicano Jim Jordan, de Ohio, assumiu a presidência da Comissão Judiciária da Câmara, seu partido passou a intimar empresas de tecnologia e organizações de pesquisa que estudam discurso de ódio e desinformação.
Paralelamente, ações judiciais movidas por ativistas republicanos contra essas mesmas organizações tornaram politica e financeiramente difícil a continuidade de muitas delas. O Observatório de Internet de Stanford, um importante centro de monitoramento da desinformação, praticamente encerrou suas atividades no ano passado em decorrência de ataques republicanos.
O CAVALO DE PAU DA META
Quando ficou claro que Donald Trump poderia derrotar a candidata do Partido Democrata, Kamala Harris, na eleição presidencial do ano passado, Mark Zuckerberg capitulou – primeiro com cautela, depois com entusiasmo.
Em agosto de 2024, ele enviou uma carta pedindo desculpas por permitir que a plataforma tivesse "ido longe demais na censura" de postagens relacionadas à vacina contra a Covid-19, tema sobre o qual republicanos vinham semeando ceticismo quanto à segurança.
Em janeiro, pouco antes da posse de Trump, Zuckerberg – vestindo uma camiseta preta e uma corrente dourada – protagonizou uma transmissão ao vivo no Facebook que se tornaria infame. Nela, anunciou que a empresa deixaria de investir em checagem de fatos. “Os checadores de fatos foram tendenciosos demais e destruíram mais confiança do que criaram”, afirmou.

Há também um forte incentivo financeiro por trás do desinvestimento em iniciativas de confiabilidade e segurança. Pelas estimativas da própria Meta, a empresa gastou US$ 20 bilhões nessas operações desde 2016.
Theodora Skeadas, ex-integrante da equipe de políticas públicas do Twitter, teme que as novas regras sejam usadas para assediar profissionais das áreas de confiabilidade e segurança da mesma forma que pesquisadores vêm sendo assediados.
“O trabalho que fazemos envolve garantir experiências seguras para mulheres e crianças e combater fraudes, terrorismo e discurso de ódio”, explica. Segundo Skeadas, profissionais da área estão apagando de seus perfis no LinkedIn palavras-chave que o governo possa considerar problemáticas.
UM PACTO FAUSTIANO
Embora CEOs de big techs tenham se manifestado rapidamente contra a taxa de US$ 100 mil proposta pela administração Trump para trabalhadores com visto do tipo H-1B, nenhum deles se pronunciou contra essas novas regras.
Isso pode estar acontecendo porque a nova aliança com Trump parece estar rendendo frutos às plataformas. O governo Trump passou grande parte deste ano atacando reguladores estrangeiros de tecnologia, inclusive na União Europeia, que aprovou recentemente a Lei de Serviços Digitais, exigindo que redes sociais policiem com mais rigor a desinformação e outros conteúdos ilegais, e a Lei dos Mercados Digitais, criada para conter práticas anticompetitivas das big techs.
Para as empresas de tecnologia, há um benefício claro nesse pacto faustiano: aderir à narrativa do governo sobre censura – mesmo que isso signifique sacrificar a segurança de seus próprios trabalhadores e arriscar um aprofundamento das divisões na sociedade norte-americana – e, em troca, contar com todo o peso do governo dos Estados Unidos a seu favor.