IA biográfica preserva memória de Vladimir Herzog e inaugura novo gênero

Criado por Paulo e Pedro Markun, o projeto transforma a história do jornalista em uma narrativa viva e propõe um novo uso da inteligência artificial para contar histórias reais

Vladimir Herzog
Créditos: Wilson Ribeiro/ Acervo Vladimir H/ Agência Brasil

Camila de Lira 6 minutos de leitura

Há meio século, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado pela ditadura militar brasileira. Em 2025, ele volta a falar: não em carne e osso, mas em código e voz sintetizada.

Um chatbot biográfico, criado com autorização da família e treinado a partir de documentos oficiais, entrevistas e textos publicados até 1975, recria a história e o modo de pensar daquele que se tornou um dos símbolos de resistência contra a ditadura militar.

Apelidado de Avatar-Vladimir, o projeto é resultado de uma parceria entre o jornalista Paulo Markun e seu filho, o ativista e programador Pedro Markun, e inaugura uma fronteira inédita: a da inteligência artificial como biografia.

O experimento busca provar que a tecnologia pode fazer mais do que replicar vozes e imagens: ela também pode ser usada para preservar memórias.

Não se trata de um griefbot – um tipo de chatbot treinado com dados pessoais deixados por quem morreu para suavizar o luto de familiares. Nem de um deepfake, que refaz a voz e o vídeo de pessoas.  “É uma nova fronteira. É uma ferramenta poderosíssima para recuperar histórias e debater memória e ética.”, diz Paulo Markun.

O lançamento do avatar de Herzog está marcado para esta quinta-feira, 30 de outubro, às 19h30, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, na Bela Vista, com a editora-executiva da Fast Company Brasil, Mariana Castro, e o jornalista, escritor e biógrafo político Fernando Morais.

Na sexta-feira, dia 31, no mesmo horário, o espaço vai receber um debate sobre o uso ético da inteligência artificial, com os jornalistas Eugênio Bucci e Leonardo Foletto.

TRANSPARÊNCIA EM PRIMEIRO LUGAR

Responsável pela parte técnica, Pedro Markun traz para o projeto a bagagem de quem já testou os limites políticos e éticos da inteligência artificial. No ano passado, ele criou a Lex, uma candidata-IA à vereadora em São Paulo – uma experiência que usava IA para provocar discussões sobre representatividade, política de dados e novas formas de participação pública.

Agora, o desafio é outro: dar voz a uma figura histórica real, sem ultrapassar o limite entre homenagem e simulação.

O Avatar-Vladimir se mantém temporalmente fiel ao Herzog da vida real.

Desde o início, o Avatar-Vladimir foi construído com um princípio claro: transparência. Se alguém perguntar ao chatbot “você é o Vladimir Herzog?”, ele responderá: “sou uma inteligência artificial, criada por meu amigo e biógrafo Paulo Markun, para ser um instrumento de reflexão sobre jornalismo e memória”.

Esse cuidado ético tem um peso especial porque Paulo Markun conheceu e trabalhou com Vladimir Herzog na TV Cultura nos anos 1970. Paulo também é biógrafo de Herzog, autor de livros como “Meu Querido Vlado – A história de Vladimir Herzog e do sonho de uma geração” e “Vlado. Retrato de um homem e de uma época”.

O avatar usa o Google Gemini para a parte textual e a ferramenta da Eleven Labs para recriar a voz. O que foi desafiador, considerando que Herzog tinha poucos minutos de áudio gravado.

NADA ALÉM DE 25 DE OUTUBRO DE 1975

Esse anacronismo traz questões éticas e morais: uma pessoa pode opinar para sempre? E, se ela opinar, está refletindo uma expressão original ou é apenas uma emulação? Se é uma emulação, dá para ser considerado vivo?

“É um terreno complexo do que é fabulação, alucinação e o que é a base documental registrada sobre a pessoa", diz Paulo Markun.

Para evitar entrar neste cenário pantanoso, o Avatar-Vlado tem um limite temporal: ele não foi treinado com nenhum dado para além do dia 25 de outubro de 1975.

A data marca o dia em que o diretor de Jornalismo da TV Cultura se apresentou voluntariamente no Departamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). No órgão de repressão da ditadura militar, Vladimir Herzog foi preso, sem ordem judicial, torturado e morto pelo Estado brasileiro.

Vladimir Herzog_jornalista
Crédito: Instituto Vladimir Herzog

A morte foi documentada como suicídio na época, uma tática comum do governo militar para tratar sobre as vítimas de suas torturas e assassinatos. A versão oficial tinha até foto – que depois se provou simulada.

A contestação sobre o que causou a morte do jornalista levou a protestos e questionamentos ao regime ditatorial. Um movimento que foi catalisador para o fim do governo militar e, depois, para a abertura dos documentos dos porões da ditadura.

O atestado de óbito só foi alterado em 2013, a pedido da Comissão Nacional da Verdade (CNV), para “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”. Mesmo assim, não há detalhamento.

O Avatar-Vladimir se mantém temporalmente fiel ao Herzog da vida real. 

AINDA ESTAMOS AQUI. TESTANDO

O limite temporal é uma das maneiras de evitar as alucinações da IA. Ao reduzir a base de conhecimento pela qual o chatbot tem acesso, é possível aumentar a acurácia, explica Pedro Markun.

“Estamos testando aos poucos para garantir que as respostas são condizentes tanto com os valores expressados por Vladimir, pelo Instituto Vladimir Herzog e também condizentes com a informação factual", diz o ativista.

Mesmo assim, como toda tecnologia experimental, é impossível evitar erros e alucinações. Por isso, os líderes do projeto sublinham que o Avatar-Vlado é ainda um processo, não um produto pronto. Ele segue em fase de testes e de debates, inclusive éticos, teóricos e jurídicos. A reflexão teórica da IA biográfica acontece lado a lado com a experimentação de linguagem.

“Estamos experimentando e criando formas legítimas, éticas e seguras de operar com essa tecnologia. Porque se a gente não fizer, alguém fará sem essas preocupações. Aliás, o Character.ai já está fazendo com personagens fictícios ”, afirma.

uma pessoa pode opinar para sempre? E, se ela opinar, está refletindo uma expressão original ou é apenas uma emulação?

Paulo Markun, que também testou a ferramenta para recriar o avatar biográfico do arquiteto Fábio Penteado, diz que o momento dos testes é também espaço para entender como as pessoas reagem a essa nova mídia. Alguns se emocionam, outros passam a tratar como se fosse a pessoa. Há ainda aqueles que sintam receio.

Para ele, poder discutir as reações já é um passo para lidar com o estranhamento gerado por uma representação tão íntima e interativa quanto a de um chatbot de voz e vídeo. “É uma tecnologia que tem um enorme poder, por isso é arriscado fazer sem rigor e cuidado”, diz. 

Eles esperam regulamentações e até novas ramificações do direito de autoria para abarcar a nova mídia – assim como o cinema, ao criar novos paradigmas de linguagem ou a possibilidade de gravação de voz, fez surgirem novas leis sobre direito de imagem.

E tudo começa com… a construção autorizada, a discussão e os testes informados. “O que estamos fazendo é o contrário de um deepfake”, afirma Paulo Markun.

O avatar não ressuscita Vladimir Herzog, mas mantém a chama do jornalista mais viva do que nunca. E tem a chance de expandir o seu legado para lidar com um dos maiores desafios da informação do século 21.

SERVIÇO:

Data: 30 e 31/10/2025

Horários: Quinta e Sexta, 19h30 às 21h30.

Inscrições: até 30/10 (enquanto houver vagas)

Endereço: Rua Dr. Plínio Barreto, 285, 4º andar, Bela Vista, São Paulo

Entrada franca


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais