IA “dá match” entre profissionais de saúde e o público LGBTQIA+

Crédito: Fast Company Brasil

Claudia Penteado 8 minutos de leitura

Dois jovens de Juiz de Fora, no interior de Minas Gerais, estão para relançar um serviço de característica única no país. Até novembro deve entrar em operação o novo portal Lacrei Saúde, que faz um verdadeiro match entre o público LGBTQIA+ e um atendimento médico e odontológico mais preparado para recebê-lo por entender suas dores e angústias.

Mas não é assim que deveria ser todo atendimento na saúde, com profissionais capacitados para compreender os males que afligem os pacientes? Não é essa, no entanto, a realidade desse público. O advogado Daniel Dutra, um dos fundadores do Lacrei, reporta histórias de usuários que enfrentaram preconceito na hora de buscar um médico, caso de uma pessoa intersexual que precisava passar por um urologista e não conseguiu atendimento, mesmo tendo recursos para bancar o tratamento.

Evitar esse tipo de constrangimento ou até mesmo alguma violência clínica é a proposta da plataforma, que é gratuita e foi lançada em fevereiro de 2020 em sua primeira versão, mas que precisou de ajustes. Em maio, seu banco de dados foi tirado do ar para que a nova configuração do serviço, agora com Inteligência Artificial (IA), pudesse ser implementada.

A ideia do Lacrei é que o usuário possa encontrar um profissional de saúde que se identifique com ele ou que se apresente habilitado a atendê-lo. Os dados coletados pelo sistema permitem fazer o cruzamento de informações para que um paciente gay negro, por exemplo, consiga marcar consulta para uma determinada especialidade com uma pessoa que corresponda a seu pedido, que pode ser um médico gay negro. A definição do perfil é feita pelo usuário.

Dinheiro não roda na plataforma. Daniel esclarece que ele e seu sócio, Felipe Vidal, estudante de Ciências da Computação da Universidade Federal de Juiz de Fora, montaram um projeto de impacto social. Quando o usuário faz uma busca e encontra um profissional dentro de seus critérios, uma das informações disponibilizadas pelo portal é se ele aceita plano de saúde. A forma de pagar a consulta é acertada entre as partes.

Daniel Dutra e Felipe Vidal (divulgação)

“Quando me perguntam se o portal tem um modelo de negócios, respondo que criamos o projeto pelo impacto social”, esclarece Daniel, que é também o CEO do Lacrei. Por enquanto, os custos mensais da plataforma são bancados pelos sócios, que avisam que até hoje não receberam recursos de um investidor anjo e que o projeto está aberto para isso.

O Lacrei tem dois pilares que fundamentam a plataforma: proteção e respeito. Ele nasceu da percepção que a comunidade LGBTQIA+ precisa de ajuda para poder ser atendida e fazer um tratamento. Trata-se de um público muito grande. Ele é estimado em torno de 10% da população brasileira pelo IBGE, mas não há estratificação no Censo feita para apontar seu real tamanho. Esse índice não incluiria intersexuais e trans.

Em julho passado, o IBGE divulgou nova estimativa da população: somos 213,3 milhões de brasileiros, número publicado no Diário Oficial da União. Ou seja, a comunidade LGBTQIA+ é composta por aproximadamente 21 milhões de pessoas – ou mais, já que o grupo pode estar sub representado pois muitos não declaram sua identidade de gênero ou orientação sexual.

AUXÍLIO JURÍDICO

No primeiro momento, o Lacrei surgiu para oferecer um serviço jurídico para esse público por meio de um aplicativo, mas logo os sócios decidiram agregar outras áreas. Assim, Daniel e Felipe estruturaram o plano em três campos: jurídico, saúde e oportunidades de trabalho.

Dos três serviços, o de saúde foi a que mais evoluiu. Seu caráter de ineditismo contribui para chamar atenção para uma área absolutamente sensível para a comunidade. Seus desafios também demandaram dos fundadores um grande empenho para redefinir o projeto.

Na verdade, desde o início, o Lacrei desperta questionamentos por parte dos sócios. São perguntas que giram em torno das necessidades e das características de seu público-alvo. Mas também envolveram decisões tecnológicas. Em agosto de 2019, quando foi feito o protótipo do aplicativo para atendimento jurídico, Daniel elaborou 28 perguntas para orientar seu funcionamento, entre elas retificação de nome.

Depois, os sócios começaram a inserir a parte voltada para a empregabilidade e para cuidados médicos. Como parte do processo de estruturação da nova área, Daniel passou a coletar histórias. “Aprendi que havia dois sentimentos no atendimento clínico: constrangimento e trauma”.

ACESSO E INFORMAÇÕES 

Em fevereiro de 2020, o projeto de app foi implementado. Ele se chamava Lacrei, incluindo as três áreas. Em agosto do mesmo ano foi lançado o Lacrei Saúde na web. Os usuários chegaram a mil.

Mas a experiência revelou que havia uma barreira para atingirem seu propósito plenamente. Parte de seu público não tinha a dimensão do que são seus direitos. Há muita gente que, por enfrentar obstáculos desde cedo, não conseguiu completar o ensino superior. Como ter acesso a informações, desse modo?

Na área de saúde, outra peculiaridade. Na proposta inicial, o serviço traria informações por especialidade. E assim foi feito. O Lacrei Saúde foi reunindo dados de profissionais de saúde que atendessem aos critérios da plataforma. Foram cadastrados mais de 600 profissionais.

Porém, constatou-se que a maioria dos usuários não fazia busca por especialidade, e sim por sintomatologia. “Muita gente não sabe qual especialidade para tratar uma doença. Então, elas faziam pesquisa em cima de sintomas”, conta Daniel.

A ENTRADA DE IA

As definições estabelecidas pelos usuários também demonstraram que era fundamental adotar uma nova base para o serviço. Certos perfis fazem questão de determinar a etnia. Outros não. Lésbicas, de modo geral, apenas pedem para ser atendidas por lésbicas. A configuração do sistema de buscas e do banco de dados não estava adequada para atender às variáveis que se apresentavam.

“Fomos descobrindo todas essas coisas e tivemos de redefinir a Lacrei. A gente tinha de usar Inteligência Artificial”, explica Daniel.

Os sócios fizeram um curso no programa AI For Good, da Fundação 1 Bi, que é apoiada pelo Grupo Movile (dono do iFood e da Sympla, entre outras empresas). A iniciativa, que oferece aulas e mentoria, é destinada a organizações de impacto social ou instituições sem fins lucrativos que já façam a captação de dados. Com o curso, os projetos aprovados no programa podem criar soluções baseadas em IA.

O banco de dados do Lacrei foi reformulado, mas, para que o portal pudesse operar no novo modelo, foi preciso tirar essa base do ar. O site continua ativo, mas “está vazio”. A área de saúde é a primeira a ser relançada. As de apoio jurídico e de oportunidades de trabalho só devem retornar ao portal no ano que vem.

SETE TIPOS DE PROFISSIONAIS

Pela configuração do serviço, o Lacrei Saúde oferece atendimento para sete tipos de profissionais: médico, psicólogo, nutricionista, dentista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo e enfermeiro. Para formar sua base, os especialistas recebem convites para que eles se tornem parte de um processo de transformação.

A carta-convite elaborada para eles diz que participar do projeto é mais do que abraçar uma causa. É a chance de fazer com que eles se conectem com mais pessoas LGBTQIAP+, oferecendo “um futuro mais longo e saudável”.

Como um dos pilares da plataforma é a proteção dessa comunidade, a validação de profissionais envolve três etapas. Há uma consulta nos conselhos de cada especialidade, bem como conferência no CRM. Depois é pedida uma selfie de identidade facial. E, por fim, há a carta de entrada em que os profissionais explicam por que estão dispostos a fazer parte da base.

A análise demonstra que o grupo atualmente cadastrado é constituído em sua maioria por brancos (85%). Mais do que isso: a maior parte é representada por mulheres cisgênero e heterossexuais. Mas muitas têm histórias ligadas a familiares, às vezes de primeiro grau, que sofreram alguma violência, entre elas agressões em público. Entre os profissionais identificados como LGBTQIA+ há depoimentos como “não quero que outros passem pelo que passei”. Como ressalta Daniel, são pessoas que querem fazer a diferença.

Como a violência pode atingir inclusive esses profissionais, o Lacrei optou por não permitir ligações diretas, nem acesso imediato ao endereço dos especialistas. Todas as tratativas são feitas via SMS.

APOIO DE VOLUNTÁRIOS

Mesmo sendo custeado hoje unicamente pelos sócios, o Lacrei Saúde conta com um reforço que dinheiro nenhum consegue comprar: o voluntariado. Com o apoio da comunidade, os planos da plataforma foram sendo conhecidos, atraindo gente que se dispôs a ajudar os sócios a preparar o serviço em sua nova configuração.

São quase 90 voluntários, grande parte deles de São Paulo, mas há gente de lugares variados, como Suécia e Portugal. A maioria (75%) é formada por mulheres na tecnologia ou em profissões relacionadas à área, como Product Owner, UX e QA. Elas trabalham na nova versão em uma rede que troca constantes mensagens. O CTO é o sócio Felipe Vidal, mas as demais chefes são todas mulheres.

Na nova fase do Lacrei Saúde a plataforma web será responsiva. O usuário poderá acessar o serviço pelo celular e ter as mesmas funcionalidades que teria na web. De acordo com Daniel, somente 20% das pessoas inscritas no portal possuem disponibilidade no espaço interno do celular para baixar aplicativos.

Quando o serviço voltar a operar normalmente, os usuários antigos terão de refazer seus cadastros, inclusive a senha. Afinal, é um banco de dados completamente novo. Vale lembrar que tudo foi feito para que cada pessoa possa encontrar o atendimento mais adequado para seu sintoma. E dentro das especificidades de etnia, gênero, orientação sexual e cidade. Por ora, a base do Lacrei Saúde está dirigida para São Paulo. No ano que vem, devem ser cadastrados profissionais da Bahia, de Pernambuco, do Pará, Amazonas, Distrito Federal e Rio de Janeiro.


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais