Kamala Harris desafia o estereótipo da humildade imposto às mulheres

Candidata à presidência dos EUA democrata inicia uma discussão mais ampla sobre a estranha obsessão pela humildade feminina

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Grace Snelling 3 minutos de leitura

No último domingo (dia 7), a candidata democrata à presidência dos EUA, Kamala Harris, participou do famoso podcast Call Her Daddy para falar sobre direitos reprodutivos, responder às críticas dos republicanos Donald Trump e JD Vance e esclarecer questões sobre sua própria família.

O que mais chamou a atenção de muitas ouvintes foi uma frase específica de Harris: a afirmação de que as mulheres não precisam “aspirar a ser humildes”. O comentário abriu discussões sobre expectativas profundamente enraizadas – e muitas vezes não questionadas – sobre o comportamento das mulheres no ambiente de trabalho, em relação aos colegas homens e na sociedade como um todo.

A declaração veio após a apresentadora Alex Cooper perguntar à candidata sobre uma fala da governadora Sarah Huckabee Sanders, do estado do Arkansas, que disse que seus filhos a mantinham “humilde”, enquanto Harris “não tem nada que a faça agir assim”.

O comentário de Sanders foi uma provocação pelo fato de a vice-presidente não ter filhos biológicos, apesar de ter dois enteados, fruto do primeiro casamento de seu marido, Doug Emhoff.

Harris respondeu: “acho que [Sanders] não entende que existem muitas mulheres por aí que, primeiro, não aspiram a ser humildes [...] Em segundo lugar, há muitas mulheres que têm muito amor e família em suas vidas, e acredito que é fundamental que todas se apoiem mutuamente.”

MULHERES CONDICIONADAS A SEREM “HUMILDES”

Além de expor o tom misógino do comentário, Kamala Harris tocou em um ponto fundamental ao rejeitar, de forma simples, a necessidade de ser humilde.

Na verdade, há uma base científica que explica a forte reação que muitas pessoas tiveram ao ouvir a fala da candidata. As mulheres são condicionadas desde cedo a agir com “humildade”, muito mais do que os homens – tanto que isso acaba se tornando parte de seus próprios pensamentos e atitudes.

Esse discurso reforça a narrativa de que as mulheres precisam parecer modestas para evitar críticas públicas.

Embora estudos mostrem que ambos possuem inteligência equivalente, as mulheres tendem a se colocar abaixo dos homens quando questionadas sobre suas capacidades, segundo pesquisas.

“Esse padrão de diferença de gênero na autoavaliação de inteligência é tão comum em diversas grupos, idades, etnias e culturas que foi chamado de ‘problema da arrogância masculina e humildade feminina’ por Furnham et al. (2001)”, explicam os pesquisadores da Escola de Psicologia Aplicada da Universidade de Griffith, na Austrália, em um estudo publicado em 2022.

Como era de se esperar, essa autoavaliação mais baixa traz consequências reais para as mulheres no ambiente de trabalho – e em outros contextos.

O PREÇO DA BAIXA AUTOESTIMA

Em uma postagem no LinkedIn em janeiro, a empreendedora Piyu Dutta, fundadora da consultoria financeira Anthropia, escreveu sobre esse fenômeno, que apelidou de “Síndrome da Modéstia Inerente” (SMI).

Ela relatou um episódio no qual presenciou executivas relutarem em compartilhar suas próprias conquistas por medo de parecerem arrogantes – e, quando o faziam, eram sempre autodepreciativas.

“Tanto nesse grupo quanto em um padrão mais amplo que observei ao longo da minha carreira, as mulheres parecem condicionadas a serem modestas e humildes”, escreveu Dutta, acrescentando que esse viés é sustentado tanto por homens quanto por mulheres.

“A SMI nos prejudica quando chega a hora da nossa avaliação anual de desempenho no trabalho, ao negociar salários ou pedir uma promoção. Nos prejudica quando deixamos de questionar suposições preguiçosas sobre nossas capacidades ou profissionalismo (muitas vezes disfarçadas de preocupação com o equilíbrio entre vida pessoal e profissional ou nosso relógio biológico). Nos prejudica também quando não acreditamos que somos qualificadas para certos cargos (um comportamento que, segundo pesquisas, os homens são muito menos propensos a ter).”

Além da pressão interna para ser “humilde”, há uma enorme pressão externa para que continuemos desempenhando esse papel. Esse discurso reforça a narrativa de que as mulheres precisam parecer modestas para evitar críticas públicas.

Para muitas, o comentário de Harris trouxe à tona esses sentimentos internalizados – e mostrou que não há problema em se recusar a permanecer nessa posição de humildade.


SOBRE A AUTORA

Grace Snelling é colaboradora da Fast Company e escreve sobre design de produto, branding, publicidade e temas relacionados à geração Z. saiba mais