Nham, o app que une merenda escolar e agricultura familiar

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Claudia Penteado 7 minutos de leitura

Um programa de segurança alimentar que liga a escola pública à agricultura familiar por meio de um aplicativo é uma solução que surgiu no sul de Sergipe e que tem potencial para ser adotada no resto do Brasil. Essa é a expectativa do Instituto de Pesquisa em Tecnologia e Inovação (IPTI), sediado em Santa Luzia do Itanhy, município sergipano que detém um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. E lá que foi implantado o Nham, iniciativa que nasceu para enfrentar um problema grave de anemia detectado entre as crianças da rede pública de ensino. 

O projeto, que tem esse nome como acrônimo de “Nutrition for a Healthy and Appetizing Meal”, em inglês mesmo, tem patrocínio da Bayer e foi premiado neste ano em um evento global realizado pela companhia, o Social Innovation Pitch. O programa, que beneficia quatro mil estudantes de Santa Luzia do Itanhy, entre seis meses e 15 anos, foi o único do Brasil a receber o reconhecimento, atribuído a mais três dentre 28 competidores de vários países do mundo. 

Estavam na disputa pelo prêmio – 25 mil euros reservados a cada ganhador – projetos inovadores capazes de promover desenvolvimento social. Uma requisição era que eles estivessem em funcionamento, em condições de serem avaliados por sua execução, ainda que inicial. Ou seja, tinham de ser mais do que uma ideia. 

O início de desenvolvimento do Nham e seu aplicativo foi em janeiro deste ano, mas o projeto vem sendo sonhado desde 2012. No ano anterior, o IPTI descobriu que 32% das crianças nas escolas da região sofriam de anemia. A meta preconizada pela OMS é que esse índice não fique acima de 5%. A anemia detectada era de deficiência de ferro como consequência da má alimentação ou de verminoses. 

“A anemia está ligada à educação. Se a criança está anêmica, não consegue estudar”, diz o engenheiro civil Saulo Barretto, um dos fundadores do IPTI e responsável pelo relacionamento institucional e pelos novos negócios da entidade. Diante desse quadro, era preciso fazer algo. E dessa maneira, aos poucos, foi sendo construído o projeto de segurança alimentar.

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Lançado em São Paulo em 2003, o instituto mudou sua sede para Sergipe em 2010 para poder criar um modelo que quebrasse a perpetuação da pobreza na região. Para isso, era necessário atuar em diversas frentes, segundo o conceito de tecnologia social (soluções construídas com a comunidade para enfrentar algum problema social, respeitando princípios da ciência e da tecnologia e que demonstrem ser eficazes, sustentáveis e replicáveis). 

O IPTI tem atualmente 22 tecnologias sociais. Em 2012, o instituto conseguiu apoio da Bayer para um projeto que ajudava no monitoramento de vetores epidêmicos, como os causadores da dengue e da Chikungunya. A companhia conheceu mais de perto o trabalho da entidade e decidiu investir em inovação que beneficiasse crianças e adolescentes. 

A partir daí, o instituto começou a elaborar um projeto de segurança alimentar. Era preciso analisar diversos aspectos que poderiam contribuir para que os estudantes tivessem boa saúde. Não foi pouco o trabalho. “Tinha a questão da merendeira, que precisava ganhar autoestima e receber mais capacitação. A gente teria de utilizar data science para saber os alunos presentes na escola num dia. Outro ponto era a necessidade de informações nutricionais das crianças”, conta Saulo. 

O projeto também teria de se conectar com a agricultura familiar e identificar que agricultores poderiam fornecer produtos para a merenda escolar. O Programa Nacional de Alimentação Escolar já inclui esse tipo de parceria, mas era preciso simplificar o cadastramento dos fornecedores e estimular essas conexões. Amarrar todas essas pontas exigiu tempo. 

Fora isso, a Bayer fez um importante aporte para o projeto. A companhia investiu no trabalho do IPTI um montante de R$ 1 milhão, distribuídos ao longo de dois anos (2021 e 2022). E isso levou ao rápido desenvolvimento do Nham. “A gente contava com tecnologias – como o Tag, que é nosso sistema de gestão –, evidências, históricos e substâncias que hoje fazem parte do Nham”, explica Saulo. 

Em seu desenho atual, o aplicativo tem a função de integrar a demanda alimentar das escolas com a agricultura familiar de modo a fazer com que o agricultor possa planejar o plantio. Ele pode recorrer ao Tag para conferir essa programação. Dados sobre os estudantes como as necessidades nutricionais e cuidados especiais para problemas como obesidade e diabetes também estão nesse sistema. 

Pelo que se avançou desde o início do ano até agora, o IPTI acredita que o projeto teria condições de ser expandido para outras cidades e estados a partir de 2023 – até porque o sistema Tag está presente hoje em 29 municípios. Como novos desafios podem surgir no próximo ano, Saulo faz também uma projeção conservadora: 2024. 

COMO FUNCIONA

O aplicativo do Nham captura os dados do Tag, especialmente em relação à história do consumo alimentar da escola, que é informado dia a dia. O app consegue dizer para o agricultor que em março do próximo ano, por exemplo, a escola vai comprar 50 quilos de tomate. Desse modo, ele pode se preparar para entregar o produto na época. 

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A solução também ajuda o agricultor a comercializar sua produção dentro do Programa Nacional de Alimentação Escolar. “Ele vai poder se apresentar à sociedade como fornecedor”.  O aplicativo ajuda ainda quando é preciso fazer algum transporte de produto do agricultor para a escola. Foi montada uma espécie de serviço de táxi para esse fim. Na região, os povoados são distantes e são ligados por estradas de terra. 

O programa trabalha ainda pela valorização do papel da merendeira na escola e na comunidade. E isso pode ser facilitado pela tecnologia e também com mais parcerias. “Usamos AI e machine learning para termos o acompanhamento nutricional de todas as crianças. Mas a tecnologia vai ajudar na substituição do alimento. Faltou batata? A merendeira improvisa. É o que acontece hoje”, relata Saulo. Com a implementação da segunda fase do projeto, a partir de janeiro de 2022, esse cenário vai mudar. “O aplicativo vai dizer para ela que não tem batata, mas tem mandioca. E irá apresentar a receita modificada, fazendo não só a substituição de um ingrediente. Ele irá garantir os valores nutricionais do cardápio original”, detalha. 

As soluções de IA e machine learning foram desenvolvidas pela Universidade Federal de Juiz de Fora, parceira do projeto. A intermediação de campo, o envolvimento com as escolas e os conselhos de educação, mais o trabalho com as merendeiras e os agricultores ficam a cargo do IPTI.

ALIMENTOS LOCAIS 

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A equipe do instituto atua com cinco merendeiras, que fazem parte do grupo de pesquisa. Elas ajudam no aperfeiçoamento de técnicas e processos. Em meados de novembro, as merendeiras tiveram uma oficina com uma chef, que destacou a importância do consumo do alimento local. E fez, junto com as merendeiras, pratos com ingredientes que os moradores da região têm em suas casas. Na lista dos produtos estão caju e acerola, entre outros. “Ela usou até flor do mato”, lembra Saulo. 

Entre os pratos preparados pelas merendeiras a partir de produtos locais e dos hábitos alimentares da região estavam tartar de banana, tartar de abacaxi e acerola, salada de caju, salada de feijão verde e amendoim cozido, carne de panela com inhame, arroz de galinha de capoeira e cuscuz de aratu (um tipo de caranguejo).

NOVA FASE

Agora, o aplicativo do Nham está prestes a apresentar novas funcionalidades. Uma delas, em desenvolvimento, é a fase relativa à presença do aluno. O app irá mostrar que estudantes estão no local e que pratos deverão ser preparados, de acordo com suas informações nutricionais. Essa solução deverá ficar pronta em meados de 2022. 

A área dedicada ao agricultor também será aprimorada para que ele possa comercializar sua produção por meio do programa do governo federal – e isso está previsto para ser concluído no final de 2022. Para se cadastrar pelas vias normais, são necessários diversos documentos. A nova função do aplicativo será simplificar o preenchimento de dados e orientar melhor o produtor para que ele esteja habilitado para vender o que plantou. 


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais