Por que a Apple limitou o uso do AirDrop na China?

A empresa mudou o funcionamento do recurso que permite troca de arquivos diretamente de iPhone para iPhone

Crédito: Michael Zhang/ AFP via Getty Images

Wilfred Chan 4 minutos de leitura

Conforme os protestos em massa contra as restrições da política “Covid zero” se espalham pela China e pressionam o presidente do país, Xi Jinping, os manifestantes estão tendo que lidar com a censura às redes sociais e enfrentando o maior aparato de vigilância tecnológica apoiado pelo estado no mundo – que inclui rastreamento de localização e reconhecimento facial.

Mas nem todos os obstáculos que atrapalham os manifestantes podem ser colocados na conta do governo chinês: o Vale do Silício também tem participação em pelo menos um deles. 

No início de novembro, a Apple, discretamente, implementou restrições ao recurso AirDrop para usuários na China, impedindo que os usuários deixem seus dispositivos abertos para receber arquivos de quem está nas proximidades. Com isso, a gigante da tecnologia acabou com a capacidade dos ativistas chineses de alcançar estranhos usando esta ferramenta de comunicação ponto a ponto.

as mudanças “foram claramente feitas em um contexto de pressão do estado chinês”. 

O AirDrop permite que os usuários enviem arquivos semi-anonimamente direto para outros usuários da Apple nas proximidades, via Bluetooth. Para isso, os destinatários precisam configurar seus dispositivos para serem visíveis por “todos”.

Antes dessa última atualização, os ativistas chineses conseguiam usar o AirDrop para divulgar informações a desconhecidos em áreas movimentadas sem revelar seus próprios dados pessoais e sem precisar passar por uma plataforma centralizada. A atualização impossibilitou essa tática.

Agora, os usuários na China só conseguem configurar o ajuste do recebimento do AirDrop como “Todos” durante no máximo 10 minutos, antes que ele volte automaticamente para "Apenas Contatos". Isso significa que a maioria dos dispositivos da Apple no país não poderá mais receber AirDrops de estranhos, mesmo que seus usuários queiram. 

As notas de lançamento da Apple não mencionam essa alteração e listam apenas “correções de bugs e atualizações de segurança”. A Apple não comentou a mudança publicamente e um porta-voz da empresa não respondeu a um pedido de comentário.

PRESSÃODO GOVERNO LOCAL

Expressões públicas de dissidência não são comuns na China, onde décadas de monitoramento rígido e de dura repressão quase sufocaram o ativismo político explícito. Mas em outubro, pouco antes de Xi Jinping garantir um terceiro mandato sem oposição como líder da China, alguns residentes usaram o AirDrop para pedir o fim da ditadura de Xi. Com essa última atualização da Apple, protestos por meio do AirDrop dificilmente voltarão a acontecer tão cedo na China.

Mark Selden, historiador e sociólogo que examinou o relacionamento da Apple com a China em seu livro "Dying for an iPhone" (Morrendo por um iPhone), de 2020, afirma que as mudanças “foram claramente feitas em um contexto de pressão do estado chinês”.

a maioria dos dispositivos da Apple no país não poderá mais receber AirDrops de estranhos, mesmo que seus usuários queiram.

Selden explica que a gigante de tecnologia depende muito da China como centro de produção e base de clientes. Por isso, “não tem saída”, a não ser se curvar às autoridades chinesas, se quiser continuar operando lá.

Em 2017, a pedido dos reguladores chineses de segurança cibernética, a Apple concordou em transferir o controle dos dados do iCloud dos usuários chineses para uma empresa estatal. A pedido das autoridades locais, a Apple também removeu aplicativos da App Store chinesa, incluindo apps de notícias estrangeiras e de apoio aos protestos de Hong Kong.

EM QUARENTENA E SEM BÔNUS

Selden nota que a Apple geralmente tenta atender às solicitações das autoridades locais de forma muito discreta – ou o faz indiretamente por meio da Foxconn, sua parceira de fabricação, que produz a maior parte dos iPhones do mundo em suas fábricas em território chinês.

Mas, neste caso, “eles foram pegos de calças curtas”, por assim dizer. Agora, estão tentando lidar com as reações dos clientes sem admitir os motivos reais de suas ações. Mas as razões parecem bastante claras.

Em 2017, a Apple concordou em transferir o controle dos dados do iCloud dos usuários chineses para uma empresa estatal.

A própria Foxconn tem sido um local de agitação. Grandes protestos eclodiram na fábrica da empresa em Zhengzhou, após meses de tensão latente por disputas salariais e bloqueios por causa da Covid-19.

Alguns trabalhadores saíram da fábrica em outubro para voltar a pé para casa, enquanto outros dizem que ficaram em quarentena e sem comida. Pessoas contratadas para preencher vagas dizem que foram enganadas quanto aos bônus prometidos, o que a Foxconn atribuiu a um “erro técnico”.

As autoridades minimizaram os protestos, que eclodiram em todo o país depois que um incêndio na região de Xinjiang matou 10 pessoas em um prédio supostamente em isolamento por causa da pandemia. Enquanto as manifestações aumentavam, o jornal estatal nacionalista Global Times publicou um editorial culpando “forças ocidentais” por alimentar as críticas às políticas de enfrentamento à Covid-19 da China.

Os manifestantes estão inconformados. Em um vídeo amplamente divulgado nas redes sociais, um homem grita: “Não podemos nem acessar a internet estrangeira. Como as forças internacionais vão conseguir se comunicar com a gente? Temos apenas forças domésticas que não nos permitem governar a nós mesmos”.


SOBRE O AUTOR

Wilfred Chan é jornalista em Nova York e escreve para o jornal The Guardian e a revista New York Magazine, entre outras publicações. saiba mais