Um benefício inesperado das vacinas contra Covid-19: combater o câncer
Pesquisa sugere que os imunizantes de mRNA da Moderna e da Pfizer podem preparar o sistema imunológico para atacar o câncer

As vacinas personalizadas, que treinam o sistema imunológico para combater células cancerígenas específicas, têm mostrado resultados promissores. Mas talvez exista uma forma ainda mais eficaz de tratar o câncer – bem diante dos nossos olhos.
Segundo um novo estudo publicado na revista “Nature”, pacientes em tratamento para câncer de pele e de pulmão em estágio avançado que haviam recebido a vacina de mRNA da Moderna ou da Pfizer contra a Covid-19 apresentaram uma sobrevida maior.
Esses imunizantes utilizam a tecnologia do RNA mensageiro (mRNA), que instrui as células do corpo a produzir uma proteína semelhante à do vírus, desencadeando uma resposta imunológica que ensina o organismo a se proteger.
Uma equipe que pesquisava vacinas de mRNA personalizadas contra o câncer descobriu que sua eficácia estava relacionada não à personalização em si, mas à ampla resposta imunológica que elas provocavam. Isso levou os cientistas a investigar se as vacinas de mRNA já disponíveis poderiam gerar um efeito semelhante.
Eles analisaram os registros de quase mil pacientes com câncer avançado atendidos no MD Anderson Cancer Center, em Houston, no Texas, comparando os resultados entre aqueles que haviam recebido pelo menos uma dose da vacina da Pfizer ou Moderna e aqueles que não haviam sido vacinados.
O resultado foi surpreendente: pacientes com câncer de pulmão vacinados viveram quase o dobro do tempo após o início do tratamento.
Pacientes com melanoma agressivo que também receberam um desses imunizantes tiveram uma melhora semelhante e viveram tanto que a média de sobrevida não pôde ser determinada dentro do período do estudo. Já vacinas que não utilizam mRNA, como as da gripe, não apresentaram o mesmo benefício.

Os ganhos mais expressivos foram observados em pacientes que receberam a vacina até 100 dias antes de iniciar a imunoterapia conhecida como “checkpoint imunológico” e, curiosamente, entre aqueles cujos tumores tinham menos chances de responder bem ao tratamento.
Os pesquisadores acreditam que a resposta imune provocada pelas vacinas de mRNA prepara o sistema imunológico para reagir melhor à terapia, estimulando as células T a atacar o câncer com mais intensidade.
“A vacina de mRNA contra a Covid-19 funciona como um alarme que ativa o sistema imunológico em todo o corpo”, explicou Adam Grippin, coautor do estudo e oncologista do MD Anderson, à “Nature”. “Ficamos impressionados com os resultados que observamos nos pacientes.”
O FUTURO EM RISCO
As próximas pesquisas devem continuar explorando o potencial das vacinas de mRNA no tratamento do câncer, mas o caminho não será fácil. O financiamento científico nos Estados Unidos sofreu cortes severos neste segundo governo do presidente Donald Trump, e a situação é ainda mais crítica para as pesquisas com mRNA.
Em agosto, o secretário de Saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr . anunciou o cancelamento do repasse de US$ 500 milhões em recursos federais destinados a pesquisas de vacinas de mRNA, prejudicando um dos campos mais promissores da medicina moderna – com potencial não apenas para o combate de futuras pandemias, mas também para o tratamento de doenças como o câncer e o HIV.
pacientes em tratamento para câncer de pele e de pulmão que haviam recebido a vacina de mRNA apresentaram sobrevida maior.
Em um vídeo justificando a decisão, Kennedy afirmou que a tecnologia de mRNA “traz mais riscos do que benefícios no caso de vírus respiratórios” e que o governo passaria a “investir em soluções que superem as limitações do mRNA.”
Durante a operação Warp Speed – o programa de desenvolvimento de vacinas criado no primeiro mandato de Trump e elogiado até por seus críticos –, o então presidente chegou a chamar a vacina de mRNA da Pfizer de “um milagre médico”. “Este é um dos maiores feitos científicos da história”, declarou na época.
Para especialistas de todo o mundo, interromper esse tipo de pesquisa seria um erro grave. “Não há qualquer benefício nisso”, diz Bill Hanage, professor de epidemiologia da Universidade de Harvard, sobre os cortes no desenvolvimento de vacinas de mRNA. “Há apenas prejuízos. No caso de uma nova pandemia, é como se tivéssemos que enfrentá-la com uma das mãos amarrada.”