A cozinha como pilar de convivência social pode estar com os dias contados

Cozinhas automatizadas já são uma realidade em todo o mundo

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Patrick Lin 5 minutos de leitura

Automatizar a produção de alimentos é diferente de automatizar qualquer outra coisa. A comida é essencial para a vida, e a forma como ela é acessada, preparada e consumida pode alterar profundamente as sociedades.

Cozinhas automatizadas não são mais apenas conceitos futuristas, como vistos em “Os Jetsons”ou "Jornada nas Estrelas". Essa tecnologia já é uma realidade em todo o mundo. Robôs já estão sendo usados para virar hambúrgueres, fritar frango, fazer pizzas, preparar sushi, montar saladas, assar pães, misturar coquetéis e muito mais. 

A IA pode criar receitas com base na compatibilidade molecular dos ingredientes ou com o que estiver disponível na despensa. Conceitos ainda mais avançados estão sendo desenvolvidos para automatizar completamente a cozinha, inclusive em restaurantes de alta gastronomia.

Como acontece com toda nova tecnologia, os primeiros a adotar as cozinhas inteligentes são os restaurantes e outras empresas, que têm maior capacidade de investimento. Com o tempo, os preços devem cair, permitindo que cheguem aos lares, o que pode transformar tanto a dinâmica familiar quanto a social.

Mas a tecnologia de alimentos pode realmente mudar a sociedade? Sim, basta pensar no impacto significativo que o forno micro-ondas teve. De repente, tornou-se possível preparar uma refeição rápida para uma única pessoa, o que pode ser vantajoso, mas também um fator de disrupção social.

A conveniência pode transformar o ato de comer, de uma experiência comunitária, cultural e criativa, em um ato puramente utilitário de sobrevivência – impactando relações, tradições, a forma como as pessoas trabalham, a arte de cozinhar e outros aspectos da vida cotidiana para milhões de pessoas.

Por exemplo, imagine como seria a vida sem o micro-ondas. Em vez de comer em sua mesa de trabalho durante o almoço, talvez fosse necessário sair, conversar com outras pessoas e aproveitar uma pausa no expediente.

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A conveniência pode ter um custo elevado, por isso é importante refletir sobre os possíveis impactos éticos e sociais que essas tecnologias emergentes podem trazer, especialmente em um aspecto tão humano e cultural como a alimentação, que está profundamente enraizado no nosso dia a dia.

Minha equipe na Universidade Estadual Politécnica da Califórnia está conduzindo o que acreditamos ser o primeiro estudo sobre os impactos que cozinhas com inteligência artificial e robôs cozinheiros podem ter em diferentes sociedades e culturas ao redor do mundo. Identificamos três grandes áreas de benefícios e riscos a serem analisadas.

CRIADORES E CONSUMIDORES

Cozinhas equipadas com IA trazem benefícios como permitir que chefs sejam mais criativos e eliminar tarefas repetitivas e tediosas, como descascar batatas. Essa tecnologia pode liberar tempo. Não precisar cozinhar significa poder passar mais tempo com a família ou focar em tarefas mais urgentes.

Para uma alimentação personalizada, a inteligência artificial pode atender a uma infinidade de dietas especiais, alergias e preferências sob demanda.

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No entanto, também há riscos para o bem-estar. Cozinhar pode ser uma atividade terapêutica, proporcionando oportunidades para expressar gratidão, aprender, ser criativo, comunicar-se, explorar, expressar-se, crescer, tornar-se independente e ganhar confiança – tudo isso pode se perder se ninguém mais precisar cozinhar.

COMUNIDADE E CULTURAS

A inteligência artificial pode contribuir para a criatividade, criando apresentações elaboradas e novas receitas que respeitem o espírito de uma cultura. Assim como a IA e a robótica ajudam a produzir novos conhecimentos científicos, elas podem aprofundar nossa compreensão das propriedades dos ingredientes, suas interações e técnicas culinárias, incluindo novos métodos.

Mas há riscos para a cultura. Por exemplo, a inteligência artificial pode distorcer receitas e métodos tradicionais, já que tende a estereotipar – simplificando ou padronizando detalhes e distinções culturais.

Esse viés pode levar à redução da diversidade nos tipos de culinária produzidos por IA e cozinheiros robôs. Os desenvolvedores de tecnologia podem se tornar os guardiões da inovação culinária, se as limitações de suas máquinas levarem à homogeneização das cozinhas e da criatividade, como a estranha semelhança entre as imagens geradas por inteligência artificial em diferentes aplicativos.

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Além disso, pense nos seus restaurantes e pratos favoritos. Como suas peculiaridades podem mudar com cozinhas automatizadas? Sua experiência gastronômica seria prejudicada se você soubesse que quem está cozinhando para você não é um amigos ou familiar, mas sim um robô?

A esperança com a tecnologia é que mais empregos sejam criados do que perdidos. Mesmo que haja um ganho líquido de empregos, os números escondem o impacto nas vidas das pessoas.

Muita gente na indústria de serviços alimentícios – uma das ocupações mais populares em qualquer economia – pode se ver incapaz de aprender novas habilidades para um trabalho diferente. Nem todos podem ser desenvolvedores de IA ou técnicos de robótica, e supervisionar um robô pode não ser um trabalho melhor do que cozinhar.

SEGURANÇA E RESPONSABILIDADE

Como os humanos são uma das principais fontes de contaminação e transmissão de doenças, cozinheiros robôs podem melhorar a segurança alimentar. Cortes precisos e outras automações podem reduzir o desperdício de alimentos, e receitas geradas por IA podem otimizar o uso dos ingredientes. Refeições personalizadas podem ser benéficas para a nutrição e a saúde.

Mas a tecnologia ainda tem um longo caminho pela frente, então não está claro se esses benefícios serão plenamente alcançados. Doenças transmitidas por alimentos são uma incógnita.

Nem todos podem ser desenvolvedores de IA, e supervisionar um robô pode não ser um trabalho melhor do que cozinhar.

Será que a IA e os robôs serão capazes de cheirar, saborear ou sentir o frescor de um ingrediente ou a falta dele e realizar outras verificações de segurança?

A segurança física também é uma questão. É essencial garantir que um chef robô não corte, queime ou machuque alguém acidentalmente devido a uma falha na visão computacional ou outro erro.

Chatbots de inteligência artificial já aconselharam pessoas a comer pedras, cola, gasolina e cogumelos venenosos, então não é exagero pensar que as receitas geradas por IA também podem conter falhas.

Dado o papel fundamental que a alimentação desempenha, as tecnologias alimentares ajudam a moldar a sociedade. A cozinha ocupa um lugar especial nos lares, bairros e culturas. Por isso, interromper essa respeitável instituição exige um planejamento cuidadoso para maximizar os benefícios e minimizar os riscos.

Este artigo foi publicado no “The Conversation” e reproduzido sob licença Creative Common. Leia o artigo original.


SOBRE O AUTOR

Patrick Lin é professor de filosofia na Universidade Estadual Politécnica da Califórnia. saiba mais