A era dos influencers pre-born: nem nasceu, mas já está nas redes

Postamos mais e mais dados de pessoas que ainda nem chegaram ao mundo, mas já têm milhares de seguidores

Crédito: Toro Tseleng/ Marc Mueller/ Unsplash

Camila de Lira 4 minutos de leitura

Viih Tube resolveu criar um perfil para o seu (ou sua, ainda não sabemos) filho. O bebê em questão tem três meses (de vida intrauterina), e ainda está, portanto, sendo gestado.

O fato está longe de ser isolado no mundo dos criadores de conteúdo. Mais e mais vemos vídeos de bebês, fotos de ultrassonografias e perfis de crianças recém-nascidas organizados e publicados por seus pais.

O que me tira um pouco o sono nessa história toda é: será que estamos criando influenciadores pré-natais? Bebês que, antes mesmo de nascer, já estão entrando na roda dos algoritmos, do engajamento e da audiência a qualquer custo?

No lugar de falar sobre privacidade ou segurança, que são dois aspectos sempre muito abordados quando se fala de redes sociais e crianças, queria falar sobre registro. E sobre memória. E sobre, bem, humanidade, talvez?!

Porque as primeiras coisas que me vieram à mente quando li essa notícia foram as pastas da minha mãe. E estou falando daquelas de papel, sabe? Com elástico que sempre arrebenta, e aí você tem que amarrar, aí não consegue mais fechar direito.

será que estamos criando influenciadores pré-natais?

Numa dessas relíquias dos materiais escolares dos anos 90, minha mãe guardava, há até pouco tempo, meus documentos de infância. Uma espécie de clipping, na verdade. A carteira de vacinação (rosinha, toda cheia de selos. Inclusive repetidos. Antivax não tinha espaço há 30 anos), certidão de nascimento, cartõezinhos que ela recebeu no dia que nasci e cópias de folhas em plástico filme contendo uma Camila no útero. 

A pasta, que depois foi para a minha casa, hora ou outra é revista com muito carinho. E é um negócio incrível de se ter. Minha mãe, assim como a Viih Tube, também queria “deixar tudo registrado” – só que para uma audiência muito, muito, muito menor. Um registro que pode ser revisitado por poucos (e, mesmo assim, já causou alguns embaraços quando ela insistiu em mostrar AQUELAS FOTOS de infância para amigos ou namorado).

A MODA DO "SHARENTING"

Outra memória que une bebês e os anos 90 (e ultrassonografias, olha só): quem aqui não se lembra da reportagem do Jornal Nacional ao vivo para noticiar o nascimento da Sasha? E de como, antes mesmo de ela nascer, já havia revistas publicando especulações sobre qual seria a cor dos olhos e dos cabelos da menina?

Nem precisamos ir tão longe, porque algo parecido foi feito com as crianças da família real inglesa. 

Hoje em dia, a maioria dos bebês é, potencialmente, Sasha. Só que quase nenhuma mãe tem a fama que Xuxa tinha naquela época. E, diferente do que rolava naquele momento, quando muito da conversa publicada na imprensa sobre Sasha era à revelia da Xuxa, agora, pais e audiência o fazem por vontade própria. 

Sharenting é o ato de compartilhar o dia a dia dos filhos pequenos nas redes sociais.

É o que chamam de “sharenting”. Você deve estar pensando: “que maravilha, tudo que precisávamos, mais um nome em inglês, com pronúncia estranha, para falar de um hábito 'novo' no mundo digital”.

De qualquer forma, o sharenting é uma combinação de “compartilhar” com “paternalidade”: o ato de compartilhar o dia a dia dos filhos pequenos nas redes sociais, seja por fotos, vídeos ou histórias “engraçadinhas”.

O que me assusta é pensar que, por de trás de um ultrassom publicado, existe uma pessoinha que já está online antes de ter nascido off-line. É uma conta que me intriga. Saber que, antes mesmo de dar as caras no planeta Terra, a criança já tem a cara na web. 

No Reino Unido, fizeram uma pesquisa nesse sentido há 10 anos. Descobriram que 30% das crianças já tinham uma “pegada digital” antes de nascerem. O estudo, realizado pela empresa de segurança cibernética AVG, indicou que, na Europa, o percentual era próximo de 25%

PRIVACIDADE E CONSENTIMENTO

É um contrassenso pensar que tratamos os dados dos bebês dessa forma, enquanto tentamos cada vez mais proteger os

por de trás de um ultrassom publicado, existe uma pessoinha que já está online antes de ter nascido.

nossos. Falamos em sair do Facebook, deletar o Twitter, tirar as fotos do Instagram, diminuir as postagens e as trocas de dados, mas postamos mais e mais dados de pessoas que ainda nem conseguem entender o que é consentimento. Pessoas que, na verdade, sequer estão presentes no mundo físico. Não faz sentido. 

O perfil para o bebê é um passo a mais numa estrada que, com toda honestidade e respeito do mundo, não sei se deveríamos nem ter começado a trilhar. Porque ao criar um perfil para a criança, os influenciadores criam público e audiência para aquele bebê. Sem contar que também diversificam a própria audiência. Trata-se de uma pessoa ou de uma nova forma de receita?

O bebê já será influenciador, com milhares de seguidores (até a última conta, o de Viih Tube tinha 690 mil no Instagram) antes de ter uma certidão de nascimento. Terá assinado contratos com marcas antes mesmo de ter um nome. E um @ antes de ter um apelido de família.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais